Os séculos precedentes foram caracterizados por uma relativa imutabilidade, quando comparados com o vertiginoso século XIX. O homem de oitocentos assiste assombrado ao surgimento de uma vasta série de inovações tecnológicas, novas dinâmicas sociais, económicas e culturais que geram forte impacto na sua vida e na sociedade. Multiplicam-se o pão na mesa e as doutrinas política nas assembleias, encurta-se o tempo das viagens e, com o surgimento do proletariado fabril, a distância entre classes sociais. Acelera-se a produção, a própria vida tem outro ritmo e o homem harmoniza-se com a máquina. Com menos tempo é agora possível produzir muito mais, graças à maravilha da mecanização, introduzida em várias atividades humanas, desde a agricultura, à tecelagem, passando pelos transportes. O aço veio fortalecer não só a maquinaria e as estruturas, mas também a fé do homem em si próprio. A máquina a vapor, parece, mas não é magia nem milagre divino. A abundância e o progresso não são consequências da generosidade e grandeza de Deus. É a ciência que as proporciona, o resultado não de preces e orações, mas da sabedoria e engenho humano. Surgem então os apologistas daquilo que pode ser, afinal, uma nova religião, a religião da humanidade, alicerçada sobre o conhecimento cientifico, como propõe Auguste Comte (1798-1857), o primeiro filósofo da ciência, profeta da nova crença, aquele que inaugura o Positivismo, que defende a aplicação do triunfal método cientifico também nas disciplinas sociais, cujos fenómenos históricos e sociológicos, igualmente obedecerão a leis naturais, tal qual acontece com outras cátedras como a matemática, a física ou a biologia.
É
neste contexto que se destaca o historiador alemão Leopold von Ranke
(1795-1886), defensor de uma cisão entre a filosofia e a história,
libertando-se assim esta última da retórica metafísica, da lógica dedutiva, obtendo
o estatuto de ciência. Ranke defende o método indutivo, onde a fonte,
concretamente, o documento, seria alvo de apertado escrutínio quanto à sua
autenticidade e investigado de forma minuciosa, ponto de partida para um
conhecimento histórico produzido de forma absolutamente imparcial, depurado de
qualquer subjetividade ou especulação.
Atualmente,
em plena era espacial, todos os equipamentos utilizados para explorar outros
planetas são fabricados e enviados para o espaço em condições de máxima higiene
e esterilização, de modo a não existir contaminação de origem terrestre,
mantendo-se imaculadas tais longínquas paragens que, seguramente, um dia serão
nosso destino, história por escrever. Pede-se ao explorador do passado, ao
historiador, a mesma disciplina, uma mesma higiene, contudo, mental, uma
postura de absoluta neutralidade, que tenha o sentido crítico blindado à prova
de quaisquer ideologias ou sentimentos. No fundo, que não contamine o documento,
que o interprete sem influência das particularidades e das idiossincrasias inerentes
à condição humana e possa assim narrar os acontecimentos cristalizados no
tempo, tal e qual como aconteceram.
As
fontes históricas restringiam-se, portanto, aos documentos oficiais, onde
abundavam registos de acontecimentos considerados relevantes, predominantemente
de cariz político e militar, eventos épicos, as façanhas dos estadistas e
heróis. Outras fontes e testemunhos menores, enfermariam de subjetividade,
seriam desprezíveis. Não seria de estranhar que, se na sua busca por fontes
documentais, o historiador alemão se deparasse com o diário de um qualquer
cidadão anónimo, este seria liminarmente descartado, algo que para um
historiador da nouvelle histoire, pelo contrário, poderia constituir uma
importante fonte de conhecimento. O amor à verdade crua e nua era nobre,
mas Ranke não podia arrogar-se a ser capaz de exatamente wie es eigentlich
gewesen[1].
Era um desígnio utópico, desde logo comprometido em termos quantitativos ao
limitar drasticamente as fontes. O conhecimento produzido nunca estaria
completo e jamais daria resposta a todas as questões que a infinita curiosidade
humana continuamente suscita. A escrita da história é um trabalho cumulativo, em
constante progresso, de interação e diálogo com o presente. Novos tempos trazem
sempre novas questões, dúvidas e desafios para o historiador.
O
ambicioso historiador também não estava isento de algumas inconsistências entre
o seu discurso e a prática. Homem religioso, crente da ação de Deus sobre a
história e da figura sagrada do historiador, Ranke é um conservador, um
empregado fiel do Estado prussiano, levantando-se assim dúvidas sobre a sua
isenção e independência. A manipulação da história, mesmo que subtilmente, pode
ser de importância capital para uma ideologia, ser capaz de criar e reforçar
sentimentos nacionalistas e patrióticos, ainda mais quando o narrador é dotado
de um estilo literário romanceado que o desvia da inocuidade que defende.
Acabará por reconhecer, ele próprio, essa dificuldade em “anular o eu”.
Conscientes
da importância que a história podia ter para a República, os historiadores
franceses inaugurariam a escola metódica, corrente historiográfica que faria a
reciclagem das ideias pioneiras de Ranke, alinhavando-as com os ideais
positivistas de que o alemão, em certa medida, se afastou quando estava mais
interessado, com a sua historiografia factual, a limitar-se aos factos, sempre
singulares no tempo, e não na busca de leis universais pelas quais se regeriam.
Bibliografia
BARROS,
José D’Assunção - Ranke: considerações sobre sua obra e modelo
historiográfico - Diálogos (Maringá. Online), v. 17, n.3, p. 977-1005,
set.-dez./2013, disponível online em na área de e-learning da
Universidade Aberta.
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