Logo que nasce e durante os primeiros anos de vida, o ser humano encontra-se totalmente vulnerável e dependente de terceiros, dos cuidados maternais e familiares indispensáveis à sua sobrevivência. Uma dependência primordial que antevê depois um adulto eminentemente social, que só no coletivo se realiza e se afirma e que, capaz de se adaptar e até dominar o elemento natural que o rodeia, estará contudo vinculado a uma outra forma de dependência, agora económica e à necessidade de proteção. Esta realidade atingirá a sua maior expressão durante o período da Idade Média, quando o sistema social vigente se traduziu numa forma de submissão do homem a outro, o senhor feudal. Não obstante o sistema dominante, sempre existiram comunidades de homens livres que voluntariamente se uniram num mesmo local, desenvolvendo laços de solidariedade e cumplicidade entre si, onde a par da posse individual, coexistiam os espaços comunitários, realizando-se empreendimentos que só coletivamente podiam ser alcançados. Sendo uma civilização urbana, Roma soube reconhecer e promover à categoria de município inúmeros povoados que, ganhando em autonomia, regiam-se pela Lei romana. O modelo municipal romano, no qual as decisões respeitantes à vida coletiva eram tomadas em comício, iria entrar em decadência ainda antes do período das invasões bárbaras, quando imperaria a autoridade local do conde nomeado pelos reis visigóticos, como governador das cidades e zonas limítrofes. Nas zonas rurais subsistirão as assembleias que, por sua vez, estão ausentes no modelo jurídico-administrativo muçulmano introduzido na península ibérica após as invasões mouras, a partir do Séc. VIII, durante as quais assiste-se a um êxodo de populações e de senhores, retornando as comunidades rurais, entregues a si próprias, aos costumes e modelos jurídicos visigóticos. Durante o período de ocupação muçulmana prevalecerá a governação centralizada, sendo as cidades governadas por representantes do Califa.
Com
a Reconquista, num então ainda embrionário reino de Portugal as estruturas de poder
local são dominadas pelo senhorialismo, essa versão mais leve do sistema feudal
que vigorava nos países da Europa central, particularmente predominante na zona
norte, nas fecundas regiões entre Douro e Minho, que pelas suas características
geográficas, climáticas e fertilidade dos solos, propiciaram a fixação das
populações, constituindo um bastião territorial de tal importância estratégico
que importava preservar a todo o custo. As questões geográficas, estratégicas e
a forma como a reconquista se processa, de norte para sul, serão determinantes
na disseminação dos concelhos, claramente numa primeira fase mais frequentes a
sul, onde se concentram também mais e maiores centros urbanos (vilas) e se verifica uma maior miscigenação cultural
e intercâmbio comercial, atenta a maior proximidade com o mediterrâneo, fatores
que favorecem também a disseminação de novas ideias e explicam uma maior
abertura à inovação que a existência dos concelhos, independentes do
conservadorismo senhorial, comprova.
A
atribuição e o domínio das terras por parte dos senhores e das ordens militares
surgiu como forma do soberano recompensar o clero, nobres e cavaleiros pela sua
participação na jornada de reconquista, ficando a estes reservada a exploração
económica e a administração desses territórios, nomeadamente na vertente
judicial. Contudo, várias comunidades de homens livres e de grupos de
emigrantes francos assumirão especial protagonismo no povoamento dos
territórios que sucessivamente vão sendo conquistados às forças muçulmanas
ocupantes, sendo fundamentais na sua consolidação. Nos territórios com um cunho
marcadamente senhorial, a necessidade de fixar populações para das terras mais
remotas se extraírem rendimentos, levará os senhores a condescender e a abdicar
parcialmente das suas prorrogativas em face também do desejo crescente das
próprias comunidades em se emanciparem, surgindo as primeiras aldeias rurais
dotadas de relativa autonomia. Haverão os concelhos de se caracterizar a norte
mais por essa ruralidade (julgados), surgindo por regra junto a castelos,
igrejas, mosteiros, entrepostos mercantis ou centros artesanais.
A
concessão de forais régios, clericais ou laicos, irá disseminar-se por todo o
território. Esses instrumentos escritos que criavam ou reconheciam oficialmente
as autoridades locais, dotando-as de autonomia, embora neles constassem regras
e disposições pelas quais se devia reger a comunidade e as obrigações
tributárias para com a Coroa, eram por vezes concedidos a troco, também, de
obrigações relacionadas com a defesa do território mediante o comprometimento
dos locais em erguerem fortificações e muralhas e disponibilizarem homens para
o combate sempre que para tal fossem convocados. Nos concelhos fundados nas
zonas fronteiriças, onde deliberadamente a carga fiscal era menor para
compensar risco acrescido, constituíam-se milícias municipais, gozando os
cavaleiros vilões e os peões, estes com funções mais defensivas, de
consideráveis privilégios entre os vizinus,
esse estatuto de quem morava no concelho e que só era concedido aos novos
habitantes decorrido o prazo de um ano e um dia. Outra preocupação dos monarcas
passou pelo apoio a dar aos viajantes e mercadores, garantindo a circulação de
bens, com a fundação de localidades ao longo das principais estradas e
cruzamentos que acabariam por ser fatores de desenvolvimento e levar à outorga
de novos furais.
Apesar
de fomentarem o orgulho e o apego dos homens à sua terra, mas potencializando rivalidades
regionais, esta fragmentação de autonomias não colocava em risco a coesão do
reino, uma vez que os forais só eram concedidos depois de observados vários
quesitos, ficando inequivocamente clara a lealdade e obediência direta à Coroa,
deixando os senhores laicos ou clericais de servirem de intermediários administrativos
e tributários, de poderem exercer o poder de forma prepotente e arbitrária como
tantas vezes, até então, se sucedia. Não obstante, abusos continuados na
usurpação das melhores terras comunitárias por parte duma nobreza fundiária com
menos escrúpulos, foram muitas vezes alvo de denúncia à autoridade régia. Entre
os mais antigos forais chega a constar expressamente a proibição dos nobres
viverem nos concelhos.
A
proliferação de novos concelhos irá trazer consigo o incremento da influência
do poder centralizado do Estado régio, revelado numa primeira fase (D. Afonso
III) quando se reforça o poder inspetivo da coroa, com o envio de meirinhos, e
depois (D. Dinis) com a nomeação dos chamados juízes de fora que substituíram
os anteriores ordinários, nomeados pelas instâncias locais, procurando-se aqui nitidamente
garantir o dever de imparcialidade que impedia sobre estes magistrados que
posteriormente seriam assistidos na administração municipal por três homens
bons: os vereadores. As assembleias estavam também restritas a este grupo de
homens socialmente relevantes, que obrigatoriamente não podiam estar sujeitos a
qualquer dependência quer familiar, quer económica. O burguês encaixava-se
perfeitamente neste perfil, formando-se oligarquias visando o controlo, a
perpetuação de poderes e uma aproximação ao círculo régio e a uma tão desejada
nobilitação.
Do
mero agrupamento de pessoas que adquiriam a noção de comunidade solidária com
um mesmo destino, até esses modelos de administração do poder local autónomo e
independente que são os concelhos medievais, verificou-se um processo evolutivo
que ao longo do tempo foi recebendo contributos das várias forças ocupantes do
território nacional, tendo-se mostrado decisivos na definitiva pacificação e demarcação
das fronteiras de Portugal.
Bibliografia
Diversos
documentos e textos disponibilizados na plataforma de E-Learning da
Universidade Aberta.
REIS,
António Matos – História dos Municípios
[1050-1383], 1ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 2006 (edição eletrónica
de 2015).
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