Até meados do século XV o conhecimento do mundo por parte dos europeus, do ponto de vista geográfico e cartográfico, era muito limitado, concentrado essencialmente na área mediterrânica, epicentro do desenvolvimento económico de vários povos e civilizações, onde o atual território português ocupava uma posição periférica. Até então subsistiam na ainda pouco científica mentalidade humana vários mitos e dogmas acerca da forma do mundo, como as crenças que no limite os oceanos se precipitavam num abismo ou que o Oceano Indico era um mar fechado sem ligação com qualquer outro. Existia igualmente grande temor e desconhecimento sobre o que haveria para além das colunas de Hércules, um mar de Atlas habitado por bizarras criaturas e muito dado a tempestades e fúrias que as ondas bem mais revoltosas que batiam as praias e os rochedos da finisterra, auguravam. Contudo, os habitantes do pequeno reino à beira mal plantado[i] sempre souberam, ao longo dos tempos, daquele mar tenebroso, tirar proveito.
O
ímpeto expansionista e conquistador dos portugueses não seria refreado pelas
praias aprazíveis do Algarve, esses últimos pedaços de território continental
conquistado ao inimigo muçulmano. Além-mar e ali bem perto no Norte de Africa,
outros já conhecidos territórios e riquezas eram alvo da cobiça de nobres e
cavaleiros de armas momentaneamente desocupados. Além de razões puramente
materiais, outras havia de natureza diversa que impulsionavam os homens
mar-a-dentro. Falava-se no mítico reino cristão de Prestes João, tão desejado e
possível aliado na expansão da fé cristã e na conversão de milhões de almas,
bem como ainda de uma não menos mítica ilha da Atília e sabe-se lá que
mais ilhas e terras se encontrariam para lá da linha do horizonte azul. A
conquista de Ceuta em 1415 marcou o destino de Portugal e o início da primeira
fase da sua expansão ultramarina. Do ponto de vista militar foi uma operação de
fácil concretização, mas envolveu uma considerável logística. Os portugueses
tinham então a tecnologia e a prática na arte da navegação necessárias para o
transporte das tropas, efetuado em barcas e barinéis que voltariam a ser
utilizados nas várias incursões seguintes ao longo da costa norte de África. Fundaria
mais tarde em Sagres, o Infante D. Henrique, uma escola de navegação onde reuniu
todo o saber antigo e o mais recente que os melhores mareantes vivos podiam
partilhar. A seu mando partiriam inúmeras missões expedicionárias que não só
percorreram a costa africana, mas também, mais ao largo, descobrindo-se as então
desabitadas ilhas atlânticas da Madeira e dos Açores[ii]
que a par do arquipélago de Cabo Verde serviriam como importantes entrepostos e
pontos de escala para posteriores e mais longas travessias oceânicas. O império
ultramarino português começava a ganhar forma e a cada viagem de regresso, além
de mercadorias, mais um pedaço de experiência e saber era adicionado ao
conhecimento cartográfico, tornando as cartas de navegação cada vez mais
rigorosas e ricas em dados que seriam mais tarde incorporados na cartografia de
autores estrangeiros. Á medida que aumentavam as distâncias percorridas no
sentido sul da costa africana, as expedições iam sendo confrontadas com novos
desafios, ventos, correntes, baixios, que obrigavam a constantes inovações ao
nível da construção e tipologia das embarcações. Dobrado o cabo Bojador em
1433, existindo também saberes acumulados e recursos financeiros disponíveis
dos proventos retirados das feitorias já instaladas, tornou-se possível dar
esse considerável salto tecnológico que constituiu a caravela de dois mastros
com velas latinas. Tratava-se de uma embarcação muito versátil, capaz de
navegar em águas mais baixas, de fazer incursões nos leitos dos rios e, acima,
de tudo, permitia a navegação à bolina, contra a direção do vento. As
distâncias que agora eram necessárias percorrer para atingir longínquas
feitorias como a de S. Jorge da Mina (atual Gana) exigiam estes barcos de maior
dimensão onde se podiam instalar peças de artilharia. Embora a abordagem dos
portugueses fosse inicialmente pacífica e se procurassem acordos com os reis e
líderes tribais locais, por vezes a recusa à submissão perante o estrangeiro
tornava necessário o recurso às armas. A partir de determinada altura, as
embarcações portuguesas passariam igualmente a ser alvo de atos de pirataria e
pilhagem tornando-se assim necessário assegurar-lhe meios de defesa próprios.
Seria com uma caravela que Bartolomeu Dias iria dobrar em 1488 o cabo das
Tormentas, um marco importante na expansão marítima portuguesa porque além de
derrotado Adamastor, ficava provada a existência de uma ligação entre o
Atlântico e o Indico e a tão desejada possibilidade de se alcançarem as Índias
por via marítima era uma hipótese que ganhava agora mais força. Até então, as
preciosas especiarias só eram acessíveis aos europeus por via terrestre,
estando as caravanas sujeitas a assaltos, portagens e limitadas na sua
capacidade de carga. O empreendimento, anteriormente previsto em tese por Pero
da Covilhã, só seria alcançado uma década depois com Vasco da Gama ao comando
de uma modesta expedição composta por apenas quatro embarcações entre as quais
já se contavam duas naus. Este tipo de barco constituiu mais uma inovação
introduzida pelos portugueses, que pelas suas dimensões, casco mais longo e com
três ou quatro cobertas, podia albergar peças de artilharia de maior calibre,
mais homens, mercadorias e mantimentos necessários a viagens mais longas como
as que agora se empreendiam. Com um reino de pequena dimensão face a outros e
ao próprio mundo imenso que se revelava, os portugueses detinham um
conhecimento dos mares desproporcional, dominando os seus segredos, o regime
dos ventos, a orientação, o cálculo de latitudes, recorrendo a vários
instrumentos que sabiam adaptar à realidade náutica, possuindo ainda uma
superioridade militar que os levaria a expandir a sua presença por toda a Asia,
alcançando o Pacífico e o Japão que, então, desconhecia completamente a
existência de um continente europeu e muito menos a de armas de fogo que os
portugueses introduziriam naquela parte de um mundo cada vez mais global. Inaugurada
a rota das Índias, durante um século os portugueses dominariam o comércio
marítimo com o Oriente que se revelaria bastante rentável. As naus de grandes
dimensões, que então impressionavam os estrangeiros, eram autênticas fortalezas
flutuantes, onde cabiam aldeias inteiras e com os mais variados mesteres
presentes. Em terra floresciam várias indústrias ligadas à expansão marítima, a
começar pela construção naval, passando pela fabricação de biscoitos (principal
fonte de alimentação durante as viagens), pelo setor têxtil e pelo armamento
onde os portugueses inovam com a rapidez com que os canhões são municiados pela
culatra, ao invés da forma tradicional, pelo cano. Lisboa fervilhava de
atividade económica e era no século XVI a principal plataforma comercial entre
o Oriente e a Europa, ponto de encontro de mercadores, de novas ideias e novas
formas de ver o mundo. Ao nível da cartografia, é deste período e portuguesa a
primeira carta com uma representação geográfica muito próxima do mundo com os
contornos tal como hoje são conhecidos. Não obstante o sigilo e o segredo em
que eram mantidas as cartas de navegação, este planisfério anónimo que
incorporava elementos das cartografias mediterrânea e oriental, ironicamente só
acabaria por chegar aos nossos dias precisamente por ação do espião italiano
Cantino que também acabaria por lhe emprestar o nome.
A
conflitualidade com diversos potentados orientais e a defesa contra o corso ou
a sua prática necessária, à falta de mercadorias que servissem para trocas
pacíficas, levaram à introdução do galeão, embarcação mais estreita e
manobrável, com características mais vincadamente militares sem, contudo,
descurar a capacidade de carga, e que assistiria à chegada, finalmente e
através de meios próprios, dos primeiros barcos holandeses ás Índias, a que
seguiriam os de outros países europeus, em busca de um quinhão no negócio das
especiarias, fazendo uma concorrência para a qual Portugal não estava preparado
para enfrentar, terminando o monopólio do comércio marítimo asiático que até
então detivera.
Bibliografia
COELHO,
António Borges – Os Argonautas Portugueses e o seu velo de ouro (Séculos XV-XVI)
– in História de Portugal – José Tengarrinha (Org.) – Editora da
Universidade do Sagrado Coração (2000) – pp. 59 a 76.
DOMINGUES,
Francisco Contente – A Carreira da India – Lisboa, 1998 – texto
acessível na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta.
DOMINGUES,
Francisco Contente - A construção naval portuguesa (séculos XV-XVI) - texto
acessível na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta.
GARCIA,
José Manuel - Relações interculturais da cartografia portuguesa com as
cartografias mediterrânica e oriental - IX Curso de Verão do ICEA (2007),
texto acessível na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta.
MARTINS,
J.P. Oliveira – História de Portugal, 3ª Edição, Lisboa, Livraria
Bertrand, 1882 – disponível no site da Biblioteca Nacional de Portugal (http://purl.pt/217) pp. 186 a 203 (tomo I).
RAMOS,
Rui, coord.; SOUSA, Bernardo Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo – História
de Portugal, A Esfera dos Livros (livro em formato .pdf) – pp. 200 a 225.
[i] A expressão “Jardim da Europa à
beira-mar plantado” é da autoria de Tomás Ribeiro (1831-1901), incluída no
poema “A Portugal”.
[ii] A ilha de Porto Santo foi
descoberta três anos após a tomada de Ceuta por João Gonçalo Zarco e Tristão
Vaz Teixeira; Em 1419 seria a vez da Madeira, pelos mesmos navegadores e
Bartolomeu Perestrelo; A primeira ilha dos Açores, Santa Maria, seria
descoberta mais tarde, em 1432 por Gonçalo Velho Cabral.
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