O presente ensaio expõe diversas circunstâncias e acontecimentos que por terem sido únicos, irrepetíveis ou pela sua dimensão, fizeram do século XIV um período profundamente marcante na história da civilização ocidental.
Não é apenas o território que é
conquistado ao inimigo. Quando cessa o tinir das espadas, a guerra vira-se
contra a natureza selvagem. É preciso fazer recuar a floresta, conquistar zonas
de pasto, alimentar a paz e os homens que, vindos de todos os cantos da Europa,
por ela são atraídos. A peleja persiste, mas é uma hostilidade feudal, de
nichos, não tem a dimensão nem provoca a mortandade das cruzadas ou das
campanhas romanas. As doenças também recuam, fruto de uma melhor alimentação
que torna os sistemas imunitários mais fortes, só praticamente persistindo a
lepra como ceifadora precoce de vidas. A terra e as mulheres estão mais férteis
e até o clima, mais seco e quente, ajuda a explicar o período de expansão
demográfica e económica verificada nos séculos XII e XIII. Contudo, o século seguinte
seria disruptivo, entrava-se em território desconhecido, novos desafios se
colocavam ao homem medieval.
O
século XIV é marcado pela tensão permanente entre os vários atores do xadrez político
e social europeu. A maior delas será porventura o antagonismo entre França e
Inglaterra. A região da Gasconha era controlada pelo rei Inglês que, por se
tratar de território francês, devia prestar a devida vassalagem. Algo visto
como impensável quando, pelo contrário, do outro lado do canal, existiam outras
aspirações territoriais e até pretensões ao trono francês. A picardia entre as
duas maiores potências europeias irá deflagrar a intermitente Guerra dos 100 anos
(1337-1453), conflito que atravessará cinco gerações de monarcas, feito de
muitos impasses, alianças e traições, conspirações, avanços e recuos, com uma
longevidade que se explica pela dificuldade que os reis tinham em impor a sua
autoridade sobre os territórios assentes ainda numa forte estrutura feudal, uma
manta de retalhos de pequenos Estados dentro do próprio Estado, onde os
depauperados cofres régios não conseguiam ir buscar motivação e mobilização de
tropas suficientes para a organização de grandes campanhas militares e provocar
batalhas decisivas. O colapso da autoridade real tornou-se particularmente
evidente entre 1350 e 1370 quando bandos de routiers[i]
disseminam-se pela França, causando pânico nos campos, pilhando cidades,
atacando inclusive castelos ducais, como o de Argilly[ii].
Nos
territórios germânicos era a multiplicidade de pequenos reinos e a ascensão das
cidades Estado que transformavam em algo muito vago a suserania do Imperador
Sacro-Romano. As casas de Luxemburgo, Habsburgo e de Wittelsbach, digladiavam-se
pelo poder, registando-se em 1322 a última e decisiva grande batalha[iii]
na Idade Média numa tal escala, antes do advento das armas de fogo, que fez
pender então a balança do poder para os Wittelsbach.
Na
instável Flandres, a revolta dos camponeses abastados contra a nobreza testemunha
uma das maiores rebeliões civis do século, ilustrando bem a tensão que
igualmente existia entre classes sociais. Só seria debelada na Batalha de
Cassel (1328), com a intervenção do próprio exército regular francês contra os
insurretos flamengos. Mas a mais sangrenta das rebeliões será a Jacquerie, ocorrida em 1358, quando
bandos de camponeses descarregam a sua fúria e desprezo pelas classes
superiores, matando senhores e violando senhoras, sem outro propósito que não seja
a satisfação do seu ódio. Em 1381 a revolta dos camponeses ingleses é contra
uma “servidão demasiadamente grande” e porque “afastados do conforto e riqueza”,
como refere o cronista Froissart[iv],
justificações adequadas para praticamente todas as revoltas sociais ocorridas
no século XIV.
A
Guerra dos 100 anos terá repercussões também nos reinos ibéricos, trazendo à
tona uma série de questões mal resolvidas, como o facto do reino português ter
surgido de uma secessão de Castela[v],
num período caracterizado por disputas dinásticas e de guerra civil no lado
espanhol e a eminente união dos dois reinos, abortada com a ascensão ao poder
do bastardo D. João, o mestre de Avis, no culminar de uma série de revoltas
populares, e que, alinhado com Inglaterra, em Aljubarrota (1385) imporá uma
pesada derrota ao exército castelhano pondo um ponto final na pretendida união
ibérica.
A
Itália também não estava imune à instabilidade. São constantes as rixas e
conflitos gerados pelos clãs e famílias que dominavam as grandes urbes e o
comércio europeu. A Guerra de Chioggia, entre Veneza e Génova, os dois maiores
impérios comercias da Europa, é considerada a mais amarga do século, travada
até á exaustão moral e financeira dos seus intervenientes. Além de muitas vidas
perdidas, há a perda do Papa, quando em 1309, face ao poder exercido por França
e a uma localização geograficamente mais central no contexto europeu, se mudará
para Avinhão. O anseio crescente dos italianos em terem o Papa de volta a Roma
culminará em 1378 com o Cisma do Ocidente. Até 1417 haverão dois Papas, uma
Europa dividida em dois grandes blocos e uma consequente diminuição do
prestígio e autoridade da Igreja.
Aos
conturbados tempos que se vivem por toda a Europa, acresce a instabilidade monetária
provocada pela necessidade de liquidez dos monarcas, que repetidamente
determinam a diminuição dos metais preciosos na composição das moedas,
mantendo, no entanto, o seu valor nominal. Assiste-se a uma gradual
transferência do valor intrínseco do dinheiro para um valor simbólico. A
disseminação do dinheiro, qual vírus, funcionará também como um cavalo de troia
do capitalismo mercantilista junto do feudalismo.
Perante
a explosão demográfica verificada nos séculos anteriores e a ausência de
progressos técnicos, a produção agrícola atinge o seu limite. Existe agora um
excesso de mão de obra face à terra arável, estando as populações muito dependentes
das colheitas, vulneráveis à fome que marcaria presença em diversos anos ao
longo do século. Destaca-se a de 1315-1316, resultante de más colheitas que fizeram
disparar os preços dos cereais, chega a dizimar mais de 10% das populações
urbanas e propagou práticas canibais.
Entre
1348 e 1361 a Europa será assolada pela maior pandemia da sua história,
provocada pela bactéria Pasteurella
pestis, transmitida pelas pulgas que mordem os ratos pretos (Rattus rattus) infetados e
posteriormente os humanos. A peste bubónica, batizada de Peste Negra,
vitimizará cerca de 24 milhões de pessoas[vi],
cerca de um quarto da população da Europa e Ásia ocidental. O seu efeito foi
potenciado por uma sequência de verões particularmente quentes e húmidos e pela
grande densidade populacional das cidades, o que facilitava a sua transmissão
entre humanos através da respiração ou contacto direto. Nessas mesmas cidades,
que até então faziam os homens livres[vii]
e agora os enfermavam, acorriam as populações em desespero, que então viram nos
judeus os culpados da praga, iniciando-se uma perseguição que terá no enforcamento
de 2000 pessoas em Estrasburgo, um episódio ainda mais negro que a própria
peste. É também por esta altura que surge o movimento dos flagelantes, cultores
do sadomasoquismo que infligiam dor a si próprios para evitar piores castigos
aos demais. O movimento foi inicialmente aceite pela Igreja como forma de
penitência coletiva, tendo o próprio Papa em Avinhão ordenado uma flagelação
pública visando o fim da peste. Ficaria fora de controlo, ganhando um cariz
revolucionário, acabando por ser condenado numa bula de 1349, com os seus seguidores
a serem sentenciados à morte ou açoitados por padres, castigo seguramente mais
agradável para os flagelantes.
Conclusão: A falência da aristocracia tradicional em contraciclo com a ascensão de uma burguesia empreendedora, vocacionada ostensivamente para a obtenção do lucro, explica muitas das convulsões sociais e políticas que marcaram o século XIV, um período de profundas transformações e de catástrofes naturais perante as quais o homem nunca estivera tão pouco preparado para enfrentar.
Bibliografia
CARTWRIGHT,
Frederick F; BIDDISS, Michael – As Doenças
e a História - Lisboa, Publicações Europa-América, 2003
HOLMES,
George – A Europa da Idade Média:
1320-1450 – Hierarquia e Revolta – Lisboa, Editorial Presença, 1975
JÚNIOR, Hilário Franco – A Idade Média, Nascimento do Ocidente – 2ª edição, São Paulo, Editora Brasiliense, 2001
[i] Bandos de salteadores armados,
compostos por militares e mercenários de outros países.
[ii] HOLMES, George – A Europa na Idade
Média, pp. 35.
[iii] A Batalha de Muhldorf, na Baviera,
que opôs os eleitores de Luís, um Wittelsbach, aos de Frederico, um Habsburgo. Idem, pp. 46.
[iv] Idem, pp. 109/110.
[v]
JUNIOR, Hilário Franco – A
Idade Média, Nascimento do Ocidente, pp.
88.
[vi] CARTWRIGHT, Frederick F; BIDDISS,
Michael – As Doenças e a História, Lisboa, pp. 23
[vii] Do provérbio alemão “Stadtluft
macht frei”, “O ar da cidade faz o homem livre”, consultado em 27-5-2019 no
artigo “Lições das utopias medievais: a contribuição de Gioacchino da Fiore
(1135-1202)”, do site Consciência.net, online no endereço: http://consciencia.net/37496-2/.
Sem comentários:
Enviar um comentário