O contrato vassálico e o senhorialismo

Ser o homem de outro homem”. Esta expressão, utilizada por Marc Bloch[i], aludindo ao feudalismo, expressa uma relação vincadamente baseada na submissão e na subordinação. Podendo parecer demasiado extremista, porque na sociedade feudal dos séculos X a XIII, o homem sujeito aos deveres e obrigações do contrato feudo-vassálico, também tinha direitos e não deixava de ser considerado (do ponto de vista legal) um homem livre, a frase é, contudo, adequada para nos remeter para a origem do sistema feudal ocidental, que podemos situar no final do período clássico.

O esclavagismo, já prática comum na Grécia, é importado e exponenciado por Roma que o irá aplicar em larga escala na exploração latifundiária, baseando nele o seu sistema económico. Com o arrefecimento do ímpeto expansionista do Império, o fluxo de escravos (oriundos dos territórios conquistados) diminui consideravelmente e a manutenção dos existentes revela-se cada vez mais dispendiosa. Os grandes proprietários fundiários romanos não têm outra opção que não seja dividir os seus domínios em mansus[ii], atribuindo-os a pequenos fazendeiros livres (colonos) e até mesmo a escravos, que passam a explorar e a tirar sustento da terra mediante o pagamento de rendas anuais, prestação de serviços aos seus patronus e concedendo-lhes parte da sua produção.

A partir do século III d.C., “a terra passa a ser a riqueza por excelência, quase mesmo a única riqueza[iii]”. Muitos serviços, públicos e privados são efetuados através da concessão de terras, e futuramente é desta forma que os Reis merovíngios pagarão as suas guerras. Além da subsistência económica, da importância da terra, a instabilidade e a violência, que fazem parte do quotidiano da europa franca dos séculos VI e VII, levam os homens livres a recomendarem-se a outros mais poderosos, procurando proteção a troco de subserviência, num período em que o Estado ou a linhagem não ofereciam qualquer proteção aos mais fracos.

Já temos neste período um retrato muito aproximado da sociedade e do sistema de produção feudal, daquilo que será mais tarde institucionalizado e incentivado pelos Carolíngios, quando a ligação entre suserano e vassalo ultrapassa o mero interesse económico e de proteção, alargando-se aos interesses de teor mais estratégico e político, ligados à ocupação, administração, defesa e expansão dos territórios, unindo benefício (concessão de terras), vassalidade (obediência) e homenagem (proteção).

O suserano tem necessidade de se fazer rodear de um círculo de homens de confiança e, simultaneamente, ter disponível um contingente militar para fazer face ao inimigo muçulmano, manter a integridade do território e alimentar as suas aspirações expansionistas. Sendo a posse da terra uma forma de distinção social, será dessa forma, por vezes à custa de propriedades clericais anteriormente doadas e que recupera, que recompensa e compra a fidelidade dos nobres e cavaleiros, cujos deveres cada vez mais se especializam, estendendo-se, além do auxilium militar, a outras funções de concilium consultivas e administrativas.

O contrato vassálico pode ser considerado como um acordo de soma positiva, onde ambas as partes estão obrigadas a deveres e obrigações recíprocas, numa relação simbiótica de dependência mútua. Da parte do vassalo, deve promover pelo bem-estar, ser fiel, dever obediência, prestar escolta, auxílio e ajuda militar sempre que solicitada pelo senhor que, por outro lado, retribui-lhe com fidelidade, proteção e, principalmente[iv], meios de sustento. Não era um contrato escrito mas a ligação entre os dois homens era selada de forma inequívoca através de um ritual de entrega, solene, composto por atos orais cerimoniais, como descreve L.F. Ganshoff[v]. O primeiro ato, a homenagem, um ato de autoentrega[vi] prestado pelo vassalo que, numa pose que remetia para uma imagem de submissão e respeito, identificava claramente o seu papel no contrato. Ajoelhado, sem armas, colocava as suas mãos frente ao senhor que, de pé, as envolvia sob as suas. O vassalo declarava de seguida de forma oral a sua vontade. Importa sublinhar a importância e o valor da oralidade na Idade Média, tanto na transmissão do conhecimento, como na celebração de acordos e contratos. A palavra tinha um valor que se foi perdendo no tempo… Seguia-se o juramento de fidelidade, feito já com o vassalo de pé, com a mão sobre os Santos Evangelhos ou uma relíquia. Esta inovação do juramento com recurso a elementos litúrgicos, introduzida pelos Carolíngios, poderá ter sido uma resposta a eventuais quebras de vassalidade ocorridas, tendo assim como objetivo reforçar o caracter quase sacramental do contrato, conferindo uma dimensão mística e religiosa ao vínculo entre os dois homens. Por fim, não sendo essencial ou obrigatório para selar o contrato e a respetiva doação do feudo, o ritual do osculum, o beijo, análogo ao nosso aperto de mão.

É no coração do Império Carolíngio, nomeadamente na vasta região entre os rios Loire e Reno, caracterizada por solos férteis e uma nobreza belicosa, que os vínculos feudais serão mais intensos, sendo extensíveis numa fase posterior à Inglaterra e sul de Itália. O sistema irá florescer até ao século XIII na generalidade de todas as regiões e reinos europeus, embora assumindo características diferentes, adaptadas às realidades sociais, políticas e até geográficas dos territórios.

Em Portugal, as relações feudais serão mais vincadas pelo senhorialismo onde, ao contrário da vassalidade régia, cujo contrato é protagonizado entre nobres, a relação contratual opera-se a um nível inferior, entre um nobre (o senhor fundiário, geralmente um conde ou duque) e um não nobre (camponês, produtor), sobre o qual aquele exerce diretamente poderes judiciais, fiscais e até legislativos, substituindo-se ou, em certa medida, sobrepondo-se, à autoridade régia. O camponês submete-se ao domínio do senhor que se apropria (em géneros, serviços e muito raramente em dinheiro) do rendimento do trabalho que obtém da terra, não procurando o primeiro, nada mais, que um mero modo de sobrevivência, sacrificando a sua liberdade e vontade pessoais, o segundo, a rentabilização do feudo.

Os dois sistemas, vassálico e senhorial, vão coexistir, caracterizando uma sociedade dominada por laços de dependência, fortemente hierarquizada, onde pontificava no topo da pirâmide o suserano, depois os vassalos diretos e finalmente os pequenos vassalos, dependentes daqueles vassi domini.

A sociedade feudal apresentava laivos de escravidão, assim como o atual sistema capitalista apresenta resquícios feudais. Se aplicarmos o silogismo, estaremos hoje, na sociedade moderna atual, já tão distantes assim do sistema esclavagista? A exploração do homem, pelo homem, o tal “homem que é de outro homem”, parece perpetuar-se, parece constituir o pilar principal onde assenta a organização das sociedades humanas, metamorfoseando-se ao logo dos séculos ou surgindo, como atualmente, disfarçada sobre novas e mais subliminares máscaras.


Bibliografia

BLOCH, Marc - A Sociedade Feudal, Lisboa, Edições 70, 1987

LOT, Ferdinand - O Fim do Mundo Antigo e o Princípio da Idade Média, Lisboa, Edições 70, 2018

NICHOLAS, David - A Evolução do Mundo Medieval, Lisboa, Publicações Europa-América, [s.d.]

GANSHOF, F.L. - O Que é o Feudalismo?, 3ª edição, Lisboa, Publicações Europa-América, 1974


[i] BLOCH, Marc - A Sociedade Feudal, pp. 169.

[ii] Os mansus podiam ser ingenuilis, se explorados por colonos, ou servilis, se por escravos.

LOT, Ferdinand - O Fim do Mundo Antigo e o Princípio da Idade Média, pp. 116.

[iii] idem, pp. 367.

[iv] Sublinhado nosso. Se a fidelidade e proteção parecem ser mútuas, a posse da terra, como bem mais importante, parece ser o principal elemento motivador para o vassalo, realmente fulcral e diferenciador.

[v] GANSHOF, F.L. - O Que é o Feudalismo?, pp. 95 e seguintes.

[vi] FOURQUIN, Guy - Senhorio e Feudalidade na Idade Média.


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