Foi com a emergência da Escola dos Annales que se assistiu, em certa medida, a uma inevitável anarquização do conceito de fonte histórica que, até ao início dos anos de 1930, estava profundamente influenciado pela corrente positivista, disciplinado à documentação oficial e a factos indubitavelmente comprovados, procurando-se conferir credibilidade e rigor científico à disciplina. Mais tarde, para a nouvelle histoire[i], todas as fontes, mesmo as involuntárias ou indiretas, quaisquer marcas ou testemunhos da intervenção humana, passam a constituir provas ou indícios que o historiador não pode desprezar no processo de resgate do passado, tal como um detetive que nos pequenos e mais improváveis detalhes desvenda os casos mais complexos. A fonte histórica, a matéria-prima do historiador, verdadeira cápsula do tempo [ii], passa assim a representar, em última análise, todo e qualquer documento ou vestígio da atividade humana, ou seja, tudo o que o homem acrescenta à natureza. Passamos de uma história objetiva mas elitista e limitada, para uma quantidade massiva e abrangente de fontes, abrindo-se a caixa de Pandora a uma quantidade ilimitada de novas hipóteses e ângulos mas estreita-se o diálogo entre o presente e o passado, tornando-se o conhecimento histórico num exercício de soma positiva onde as regras para alcançar um mesmo fim estão em permanente mutação, tal como está a sociedade de que o historiador é contemporâneo, sendo convocadas para a sua construção outras valências científicas, criando-se uma dinâmica interdisciplinar essencial à interpretação e validação das fontes e dos factos.
Como
espécie, os humanos têm-se disseminado por todo o planeta, povoando-o em número
crescente e aparentemente imparável. Inevitavelmente as suas pegadas, a sua
atividade tem aumentado numa mesma fervilhante proporção, permanecendo imutável
o ancestral desejo e impulso de comunicar[iii].
Depois da invenção da imprensa e do impacto que esta teve na difusão do
conhecimento, exaltando Maria Dolores Saiz o valor do jornal como importante
fonte histórica, nesse mesmo texto[iv]
Saiz evoca a transformação que os media
operaram no nosso conceito de fonte, enriquecendo-o sem que se marginalizassem
as fontes clássicas. Estando, na sua essência, contemporâneo, é no entanto um
texto passível de ser objeto de alguma atualização. É curioso verificar como,
ao contrário do vaticinado pelos mais pessimistas, cada nova inovação ao nível
dos media não anula a anterior[v],
antes assistindo-se a um fenómeno de complementaridade cujas sinergias, de
resto, são bem exploradas pelos grandes conglomerados comunicacionais. Decorridos
mais de 20 anos sobre a reflexão de Saiz, é possível observar na televisão a segmentação
de conteúdos com a proliferação dos canais temáticos, de novos formatos como o video on demand, pay per view, a valorização do documentário com narrativa e
estética cinematográfica, o sucesso do romance histórico e a passagem dos media tradicionais para plataformas
online[vi],
sendo ainda assim surpreendente a resistência à desmaterialização total do
livro e do jornal que teimam em persistir em papel, perante a omnipresença do
digital e da internet.
A
explosão de conteúdos e a overdose de
informação instantânea atualmente disponibilizada pelos media e pela internet em particular, coloca um enorme desafio de
triagem da informação ao historiador quanto à sua relevância e autenticidade porque,
na realidade, grande parte dos conteúdos produzidos são-no com pouco ou
discutível rigor[vii]
ou apenas numa ótica mercantilista, vocacionados para a sociedade de consumo,
destinados a targets específicos, apenas
para ‘anestesiar’ ou preencher o tédio do consumidor, para já não falar no
contexto ou na agenda ideológica que pode estar por detrás desses conteúdos. Logo
à partida o historiador, na sua atividade de scavenging[viii],
terá de ser um especialista em tecnologias de informação porque é atualmente no
ciberespaço que se encontram grande parte das fontes, quer por força dos
conteúdos ali diretamente produzidos, quer da digitalização massiva de
documentos efetuada pelas entidades que os detém em suporte físico. Um palheiro
cada vez maior, mas também mais agulhas para encontrar…
Note-se
que não obstante a avalanche de dados veiculados através das plataformas mainstream e de uma propalada
transparência, virtude reivindicada pelas democracias, muita informação verdadeiramente
relevante para o historiador, inúmera documentação oficial (a privilegiada pelo
positivismo), continua a estar inacessível e envolta em grande secretismo, demorando
a ser desclassificada ou vindo ao conhecimento público por iniciativa de
projetos subversivos, como é o caso do Wikileaks
ou de intensivas investigações jornalísticas[ix]
que, quando reveladas, podem provocar clamor social e alterar perspetivas
históricas. Por outro lado, o imediatismo da informação[x]
dá-nos a ilusão do protagonismo, o próprio historiador transforma-se numa fonte
histórica direta quando observa, através de um ecrã, acontecimentos com impacto
mediático e histórico em real time. Mas
não obstante a alta definição e o cada vez maior realismo das cores, da ilusão
da proximidade, se um adepto de futebol prefere pagar 10 vezes mais para estar
no estádio e ver o jogo ao vivo, do que ficar confortável no sofá, também o sonho
do historiador sempre será estar lá, ter vivido ou viver a história na primeira
pessoa.
Bibliografia
Almeida, F. C. (Janeiro-Junho de 2011). O historiador e as fontes
digitais: uma visão acerca da internet como fonte primária para pesquisas
históricas. (R. d.-H. UFRGS, Ed.) Aedos - ISSN 1984-5634 , Vol. 3,
Núm. 8.
Barros, J. D. (Maio de 2012). Fontes Históricas:
revisitando alguns aspetos primordiais para a Pesquisa Histórica. Mouseion ,
pp. 129-159.
Saiz, M. D. (1996). Nuevas
fuentes historiográficas. Historia y Comunicación Social , pp. 131-143.
[i] Corrente historiográfica, descendente
da Escola dos Annales, surgida nos anos 1970.
[ii] Expressão retirada do site
Projetarium. Consulta efetuada em 30-11-2019, em http://www.projetarium.com/enciclopedia/FONTE_HISTORICA.full.html.
[iii] Além da comunicação interpessoal,
intercultural, da comunicação com Deus, veja-se a ânsia que parece caracterizar
a humanidade, desde meados do século XX, em conseguir comunicar com entidades
extraterrestres.
[iv] Nuevas
fuentes historiográficas, pp. 131.
[v] Com a invenção do cinema anteviu-se
o fim da fotografia. Com a rádio, o fim da imprensa escrita e com a televisão, o
fim da rádio.
[vi] Os principais canais de televisão
disponibilizam os seus conteúdos online; as estações de rádio não estão agora
limitadas pelo alcance dos seus transmissores, podendo ser ouvidas a partir de
qualquer ponto do globo ou em diferido através de podcasts; os jornais têm cada vez mais assinantes das suas versões
em formato digital.
[vii] As fake news, as teorias da conspiração ou o revisionismo histórico ideológico
são alguns dos fenómenos que se propagam pela internet e contribuem para um
certo caos informativo.
[viii] O anglicismo parece-nos adequado; em
português será qualquer coisa como ‘vasculhar’.
[ix] “Jornalismo e História são
duas disciplinas autônomas que, no entanto, compartilham vários traços em
comum. Ainda que o historiador trabalhe com o passado, e o jornalista, com o
presente, suas profissões se aproximam na medida em que constroem
representações discursivas sobre a realidade.”, in O Historiador e o Jornalista: A
História imediata entre o ofício historiográfico e a atividade jornalística (Daniel Marcilio), acessível
online em https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/36941/26769.
[x] A tecnologia possibilita
transmissões em direto a partir de qualquer parte do mundo. Foi em direto que
assistimos a momentos históricos, turning
points marcantes como a queda do World Trade Center (2001) ou a guerra em
direto com a invasão do Iraque (1991).
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