A Idade Moderna e o Renascimento

A Idade Moderna caracterizou-se por ser mais que uma rutura com o período histórico imediatamente anterior, batizado, pouco mais de uma década depois da queda da Nova Roma, como Idade Média. Poder-se-á dizer que o homem renascentista, ao menosprezar o período medieval, optou por, ineditamente em qualquer Era histórica, escolher o seu próprio passado, retornando aos valores éticos, artísticos e científicos da antiguidade clássica[1] que tinham permanecido cristalizados no tempo. A culpa desta estagnação civilizacional recairia sobre uma igreja obscurantista que asfixiava o potencial humano, subjugando o homem pelo medo da ira divina, manipulando-o, influenciando-o em todas as fases e momentos da vida.

É reconhecido inestimável mérito à Igreja, nomeadamente aos monges copistas, na preservação de textos clássicos, não se podendo, contudo, dizer o mesmo quanto ao património cultural material alvo de saques e pilhagens com a sua conivência. Não obstante o desprezo a que, principalmente no século XVI, foi votado o período medieval por alguns eruditos humanistas, não se podem descurar as inúmeras realizações técnicas e artísticas que marcaram as dark ages, necessariamente também influenciadas pela herança greco-romana, nem tão pouco foi aquele um período decadente, de estagnação cultural, destacando-se nomes de pensadores como Tomás de Aquino (1227-1274), não se pudendo ainda descurar a fundação de várias universidades atualmente quase milenares e a relevância que teve a renovação cultural operada por Carlos Magno (742-814) ou o impacto nos vários domínios da sociedade provocado pelo chamado Renascimento do século XII.

Na sua apologia e viagem de retorno ao passado clássico, o modernismo colocava o homem no centro do universo, enaltecendo as suas capacidades (nomeadamente a de gerar beleza), dotando-o de novos valores morais como a tolerância, a integridade ou o patriotismo que minava a velha estrutura social, estando agora o homem urbanizado mais subordinado à cidade (Estado) e depois à nação, que a qualquer senhor feudal ou a Deus. A razão foi conquistando gradualmente terreno à fé decadente dos clérigos corruptos e a vida triunfava sobre o fatalismo. A experiência religiosa esvaziava-se de espiritualidade, a missa transformava-se num mero costume social e a igreja era aquele local quase trivial onde as pessoas aproveitavam para se encontrarem e conversar. Passariam, curiosamente, a ser também locais onde iriam ocorrer vários assassinatos dignos de registo, como o dos irmãos Medici, em plena catedral de Florença.

A reforma de Martinho Lutero (1483-1546) foi fundamental na racionalização do cristianismo, na privatização da religião enquanto experiência pessoal e no resgate de valores que pareciam esquecidos numa altura em que os homens cada vez mais se comportavam como se Deus não existisse. Em oposição ao protestantismo, a Igreja de Roma faria a contrarreforma, procurando restaurar a sua autoridade moral, com medidas como a proibição das polémicas vendas de indulgências.

A invenção da imprensa impulsionou a literacia do homem renascentista que agora lê em silêncio, esses momentos introspetivos que reforçam a sua individualidade, passados em novos espaços criados dentro de casa, além de outros dedicados à conversação, tida como um dos maiores prazeres da vida. O homem percebia que podia ter uma palavra a dizer quanto ao seu destino, que existia mais do que um caminho (o de Deus) e a sua voz tornava-se cada vez mais ativa um pouco por todo lado, inclusive nas cortes, revoltando-se galvanizado contra o status quo. A expansão do conhecimento ficava igualmente a dever-se à multiplicação de escolas e universidades criadas fora da alçada da Igreja cada vez mais subordinada a um Estado progressivamente centralizado, administrativamente eficiente e interventivo em áreas como a justiça. Irão cumprir-se as aspirações das monarquias que há muito almejavam uma hegemonia total do poder. Ficará célebre a frase “L’État c’est moi” de Luís XIV (1638-1715) que representa o pináculo do absolutismo.

A sociedade das ordens dava lugar à sociedade das classes, todavia com a mesma configuração trinitária medieva, emergindo entre o terceiro Estado uma burguesia mercantil gradualmente mais próspera, que sonha com a aristocratização e inventa a Banca para financiar não só os exércitos nacionais, as excentricidades da realeza e de toda a sociedade cortesã mas também as grandes empresas como serão os descobrimentos. Portugal será um dos protagonistas principais dessa grande aventura quando os seus desejos de expansão territorial ficam comprometidos pela sua vasta fronteira marítima que todavia se proporá com sucesso ultrapassar, dando a conhecer á Europa novos mundos, novas culturas e novas rotas comerciais que substituirão em importância as do Mediterrâneo em grande parte inconvenientemente controladas pelos sultanatos. As conceções humanistas, o conhecimento geográfico e os avanços em matéria de navegação muito ficarão a dever aos povos exploradores ibéricos.

O frenesim mercantilista e a canalização massiva de capitais durante a Era dos Descobrimentos (séc. XV-XVII) também ajudaram a financiar e impulsionar o Renascimento e as suas mais monumentais obras e fortunas. Interrogava-se o filósofo Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), “se é difícil a um homem rico entrar no Reino dos Deus, então porque procuramos com avidez acumular riquezas?”[2] A resposta residia na nova psique burguesa onde o parecer suplantava o ser. A moda, a vaidade e o exibicionismo[3] floresciam nos salões reais e nas residências dos mais abastados tornando mais acentuadas que nunca as diferenças sociais entre a nobreza cortesã, a próspera nova classe e os modestos e pobres. A caixa de Pandora do capitalismo estava aberta, a palavra de ordem era “acumular”.

Os mecenas burgueses compreenderam que a ciência podia solucionar problemas práticos do quotidiano e dar resposta ás necessidades que o desenvolvimento dos meios de produção impunham. Se por um lado a ciência podia trazer proveitos económicos, a arte trazia prestígio e reconhecimento. A veia mecenática da burguesia iria estender-se também aos artistas que então saiam do anonimato e passavam a assinar as suas obras. Já não eram meros executantes da vontade divina e a arte deixava de ser um acessório decorativo da atividade religiosa, ganhando estatuto, sendo valorizada, mesclando-se também com a atividade dos artesãos. As cenas bíblicas e religiosas continuariam, contudo, a ser uma fonte de inspiração para muitas obras, muitas delas encomendadas também pelo clero.

Existem testemunhos do deslumbramento que experimentavam aqueles nostálgicos pioneiros da arqueologia como Ciríaco de Ancona (1391-1453), quando aos seus olhos se revelavam as maravilhas arquitetónicas e artísticas da antiguidade, durante séculos ocultas sob o solo ou entre os escombros de mais recentes ruínas. E que desilusão sentiriam, impotentes para resgatar na integra tais preciosidades e puder apreciá-las em toda a sua plenitude e esplendor. Onde estaria hoje a humanidade se os impérios clássicos não tivessem desaparecido?

 

Bibliografia

Diversos textos acessíveis na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta, na disciplina de História da Idade Moderna.

HELLER, Agnes – O Homem do Renascimento, Editorial Presença, Lisboa.

 



[1] O retorno ao classicismo foi igualmente uma das características do regime nazi liderado por Adolf Hitler (1889-1945), manifestando-se essencialmente nos domínios arquitetónico e artístico.

[2] Heller, Agnes – O Homem do Renascimento, Editorial Presença, Lisboa, pp.47

[3] Ficou célebre a comitiva enviada por D. Manuel ao papa Leão X em 1514, desfilando pelas ruas de Roma numa exibição de desmesurado luxo e sumptuosidade onde pontuavam diversos animais exóticos.

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