O Século das Luzes

Existem acontecimentos na História que são expectáveis, que mais tarde ou mais cedo, acabam inevitavelmente por acontecer. Ficaram na história os povos ibéricos como os primeiros que descobriram, para a Europa, grande parte do restante mundo até então desconhecido, embora tais descobertas fossem precisamente uma inevitabilidade, uma questão de tempo até que um dia, pelos mesmos ou outros protagonistas, ocorressem. Assim como um dia seguramente ocorrerá uma ida a Marte e a descoberta dos seus mistérios ou que, está escrito nas estrelas, acabarão os seres humanos por viajar para lá de Neptuno e se fixar para além do sistema solar conhecido, tornando-se a humanidade então numa civilização galáctica. Menos previsíveis são as revoluções que, inseridas no contexto da constante evolução e mutação das sociedades humanas e do mundo, precipitam e antecipam, para um tempo mais imediato, aquilo que era previsível acontecer naturalmente, com consequências na vida dos homens sempre mais visíveis e disruptivas, que ecoam mais alto no porvir, porque não diluídas no curso normal do tempo.

O século XVIII, o chamado século das luzes, do pensamento iluminista que iluminou o espirito humano, até então mergulhado nas trevas do obscurantismo intelectual e religioso, é um século ele próprio revolucionário, onde ocorrem múltiplas revoluções que abrangem todas áreas da atividade e da existência humana, moldando de forma decisiva o futuro da humanidade e cujas consequências, do ponto de vista económico, político e social, e acima de tudo, dos valores e do pensamento, duma forma de estar e ver o mundo,  perduram até hoje e certamente se perpetuarão nos séculos vindouros como matriz e faróis  orientadores das sociedades ocidentais. Existiram, contudo, no século precedente acontecimentos que antecederam e explicam as mudanças radicais do século da razão, embora os seus efeitos sobre os países continentais tenham sido retardados e não tão impactantes como terão, mais tarde, os resultantes da revolução que inaugurou a idade contemporânea. O período revolucionário inglês, que serviu essencialmente para consumo interno e que culmina em 1688 com a Revolução Gloriosa permitiu à Inglaterra, inventora do liberalismo, obter um grande avanço do ponto de vista económico sobre todas as nações do mundo, tornando obsoleto o velho sistema político, social e económico medieval. Tal como os outros países europeus, o país era então essencialmente agrário, mas o enorme fluxo de capitais procedente da pilhagem do Novo Mundo, anunciava uma mudança de paradigma com a ascensão do capitalismo burguês e o fomento duma atividade económica ostensivamente orientada para o lucro. Tendo Oliver Cromwell (1599-1658) como testa de ferro, a burguesia e uma proativa aristocracia latifundiária suprimiriam as forças de bloqueio, as pretensões da velha nobreza feudal que se revelavam cada vez mais anacrónicas. Derrotados militarmente os realistas, foi instaurada uma república parlamentar, sendo sob o governo daquele lord protector implementadas medidas[1] que definitivamente catapultariam os britânicos para o desenvolvimento duma economia monetária e uma acumulação de capital tal que, investido na inovação e na ciência, tinha um retorno ainda mais lucrativo pelos acrescentos tecnológicos que solucionavam problemas práticos e acrescentavam mais eficiência e valor à industria e ao comércio. Os acontecimentos registados no outro lado da Mancha foram decisivos para que se criassem naquele país as condições ideais para o surgimento de uma série de invenções que tiveram um impacto profundo não só na vida do homem comum como também no tecido produtivo e no próprio meio ambiente sobre o qual se alcançava então um domínio até antes nunca alcançado. Assiste-se primeiramente a uma revolução agrícola, com o aperfeiçoamento de sementes e culturas, uma melhor gestão e rendimento das terras agora também intensivamente utilizadas para a criação de gado em larga escala, alastrando os enclosures (desde o século XIII) que por sua vez irão possibilitar a libertação de mão de obra que acorre aos subúrbios das grandes cidades onde igualmente se fixam unidades fabris. Dá-se o arranque da Revolução Industrial impulsionada pela indústria têxtil e a necessidade de esta satisfazer uma procura crescente, que só com o advento da mecanização[2] se pode alcançar e que acabará por se estender a outras áreas, da metalurgia aos transportes. A vida do homem de setecentos, acelera, verifica-se uma transferência de valor deste para a máquina com a qual se começa a fundir e confundir. É essa máquina, cujos alimentos principais são o ferro e o carvão que providencialmente abundam em Inglaterra, que permite agora milagres como fabricar em minutos o que demorava dias, percorrer em dias o que demorava semanas. A apologia da máquina estende-se à ciência militar que agora vê o soldado como um autómato que, quando despe a farda, transforma-se num mero consumidor que tal como o proletário anseia pelos bens de consumo que compensam pelo esforço, que parecem prometer a felicidade. As cidades também aceleram, ganhando em dimensão, perdendo em condições de vida, ganhando mendigos e desempregados, perdendo em tranquilidade e dignidade.  

Entretanto, no outro lado do Atlântico, à luz dos ideais iluministas, fazia-se uma espécie de ensaio para a mãe de todas as revoluções, com uma Revolução que culminará com a criação dos Estados Unidos (1776) a partir de 13 colónias britânicas que se rebelam contra o poder centralizado em Londres. A emancipação de territórios coloniais constitui ela própria uma inovação, uma Caixa de Pandora que servirá de inspiração para futuras e semelhantes reivindicações noutras geografias.

É em meados do século que os países continentais europeus se dão conta do domínio Inglês e do fosso tecnológico existente. O velho regime resiste em França, mas a falência do Estado monárquico absolutista e a penúria em que vive a generalidade do povo, inspiram um casamento de conveniência entre a burguesia francesa, cansada de financiar os desvarios da corte e da nobreza fútil e decadente, e o povo que afinal aquela tanto teme. Se a revolução inglesa resultou na construção de um modelo democrático de governação experimentado com raízes e tradições medievas, particularmente (apenas) adaptado à realidade de um pais orgulhosamente só[3], a Francesa baseou-se na mera destruição por vezes gratuita de ícones e símbolos de um regime caduco, sobrando barbárie e terror mas também, a final, a imortalização dos ideais da Liberté, Égalité, Fraternité.

Os vários períodos revolucionários do século XVIII consolidaram o sistema de produção capitalista, o estabelecimento de novas relações de trabalho, a eliminação da sociedade das ordens e a definitiva ascensão da burguesia ao poder que atualmente se processa de forma indireta e camuflada pela via partidária, tendo permitido ainda avanços no domínio tecnológico muito significativos que se estenderam do campo da medicina ao militar. São inequívocos os progressos sociais alcançados mantendo-se, no entanto, diferenças gritantes entre classes sociais. Ainda assim, o burguês vive agora na sua villa num condomínio privado, automóvel topo de gama e televisão de 50 polegadas. O seu empregado também tem um teto e automóvel bem mais modestos e um televisor com um ecrã de menor dimensão. Mas não deixam os dois de estacionarem no mesmo centro comercial, se divertirem com a mesma comédia romântica de Hollywood. Talvez seja esta cumplicidade um dos legados mais valiosos do século revolucionário.

Bibliografia

Diversos textos disponibilizados na plataforma online da Universidade Aberta.



[1] A mais significativa das medidas de natureza económica de Cromwell foi o decreto dos Atos de Navegação (1651) que concedia aos navios ingleses o monopólio do transporte de mercadorias na Inglaterra.

[2] A lançadeira volante (fly-shuttle) inventada em 1733 por John Kay foi um marco importante no processo da mecanização.

[3] Veja-se o Brexit, a recente saída do Reino Unido da União Europeia.

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