Os Fundamentos da Restauração

 As más notícias trazidas de Alcácer-Quibir em 1578, tinham colocado no trono do reino de Portugal e Algarves, o anterior regente, Henrique. O Cardeal-Rei estava longe de possuir a imagem heroica do seu sobrinho-neto Sebastião, nem tão pouco era capaz de dar alento a um povo que se sentia órfão e desesperava por melhores notícias vindas de África, de onde a conta gotas, por obra do Casto e mediante elevados resgates, retornavam os sobreviventes da fatídica batalha. No ocaso da sua vida, ainda houve quem intercedesse junto do Papa para que, excecionalmente, este libertasse o sexagenário soberano dos seus votos e pudesse assim casar e deixar descendência. A recusa papal veio a calhar a Madrid, e a sua morte, mais que anunciada[i], irá provocar uma crise na sucessão, perfilando-se três pretendentes ao cobiçado trono deserto. O Conselho de Governadores do Reino de Portugal decidiria a complexa questão, escolhendo Filipe II “O Prudente”, fervoroso defensor de Roma, o primeiro Filipe de Portugal, já há um quarto de século Rei de Espanha, que só com recurso à força das armas executaria a sentença, pondo fim ao reinado efémero de António, Prior do Crato, um veterano da Batalha dos Três Reis[ii]. Exilado o usurpador, conquistada a Coroa portuguesa pelo espanhol, manteve, como era expectável, a capital dos reinos[iii] em Madrid, concedendo à nova aquisição uma autonomia considerável[iv], ficando a decisão sobre assuntos nacionais e a administração do Império ultramarino a cargo de portugueses, embora sob a supervisão de Castela. O país beneficiou da estabilidade proporcionada por uma poderosa mão protetora que se estendia às colónias, até então constantemente saqueadas por holandeses e franceses. Fizeram-se obras públicas, uma em particular de elevado valor não só económico, mas também simbólico, a que permitiu a navegabilidade do Tejo entre os dois reinos e, um pouco por todo o lado, multiplicavam-se os palácios, provas vivas da prosperidade que se vivia sob domínio filipino. Quando veio a Lisboa, Filipe II foi aclamado pelo povo, reverenciado pela nobreza e adulado pelo clero que pareciam abdicar de quaisquer aspirações independentistas. Muito provavelmente, assim se tivesse mantido o modelo de governação que caracterizou os dois primeiros reinados filipinos e Portugal jamais voltaria a ser uma nação independente até porque grande parte do orgulho e bravura nacionais, da fina flor da nobreza mais enérgica que eventualmente poderia revoltar-se a tempo contra a ingerência espanhola, tinha perecido na lendária batalha que arruinara o país. O reinado deste Filipe, “O Piedoso”, foi caracterizado pela forma agressiva como geria os assuntos da política internacional, envolvido que estava em conflitos militares com as províncias rebeldes holandesas e com a herege Inglaterra, acabando por se envolver também na Guerra dos 30 Anos. Esta conflitualidade múltipla e em várias frentes terá como efeito colateral a mudança de paradigma no relacionamento com Portugal.

Durante o reinado de Filipe III (IV de Espanha) “O Grande”, o ministro reformista falhado Olivares chega a propor a unificação total de Espanha, numa altura em que a nobreza portuguesa começava a demostrar descontentamento pela ascensão de fidalgos espanhóis a lugares chave na administração. Também o clero português, por via dos jesuítas, estava descontente com benesses concedidas aos judeus e com as precárias condições de vida de um povo escravizado e subjugado, cada vez mais familiarizado com a miséria e a mendicidade. A pesada política tributária que agora Espanha infligia a Portugal traduzia-se numa usurpação massiva de capital com destino aos cofres exauridos das Finanças de Madrid, necessário para alimentar a máquina de guerra. Para alguns a extorsão era vista como uma provocação, visando despertar uma qualquer revolta que seria o pretexto para, pela força, transformar o reino numa mera província. Começam então as atenções e esperanças a virar-se para o herdeiro natural do trono português, o duque de Bragança, um parente afastado dos últimos reis portugueses que contudo parecia mais interessado em compor música, estando demasiadamente comprometido com Espanha para patrocinar esse primeiro ensaio de revolta de 1637, urdido em Évora pelos jesuítas, com a bênção de Richelieu, mas para todos os efeitos, da autoria do inimputável Manuelinho, estratagema para que a revolta, fracassada, mais fácil fosse para todos dela lavarem as mãos. Seria preciso algo mais para retirar o submisso D. João do conforto do seu palácio em Vila Viçosa e arriscar o prestigio e a fortuna que gozava. Tão vastos eram os seus domínios (que fará questão de posteriormente os separar da Coroa) que era tratado sempre como se fosse monarca quando se deslocava a Lisboa. Diz-se que foi a sua esposa, que preferia morrer rainha a viver duquesa, a despertar no futuro rei a dose de audácia necessária para dar a cara pela insurreição que quatro nobres de linhagem[v] planearam, à qual se juntaram outros 36 fidalgos que, por serem segundos filhos, quais Manuelinhos, em caso de fracasso da empresa, de traição mais facilmente seriam ilibadas as suas casas. Com o apoio dos jesuítas e do poderoso aliado francês, que não tinha outro interesse que não fosse acrescentar mais um inimigo à lista de inimigos de Madrid, o golpe palaciano tinha, no entanto, tudo para dar certo. No dia 1 de dezembro de 1640, bastaria um tiro e uma vítima, o odiado secretário de Estado Vasconcelos, para terminar um período de 60 anos de domínio espanhol, iniciando-se a quarta dinastia, restaurando-se a independência de um país então social e economicamente moribundo. Apesar da rápida adesão dos territórios à Restauração, o novo rei não foi consensual entre a fidalguia e a transição de poder foi tema indiferente para parte da plebe que ainda suspirava por Dom Sebastião. Insatisfeita com as escolhas para o governo, parte da nobreza desertou para Castela e os restantes incrédulos, que contra o duque feito rei conspiraram, inclusive até para o assassinar (1641), foram alvo de perseguição e alguns deles executados. Corria então o sangue que não correra em dezembro.

A resposta de Espanha à ousadia portuguesa não foi imediata, a braços que estava o rei destituído com guerras noutras e mais importantes paragens[vi], permitindo a Portugal ter tempo para, minimamente, se organizar militarmente. Recorrendo ao apoio estrangeiro, o reino recruta mercenários que contribuíram fortemente para incrementar a brutalidade de uma guerra entre vizinhos e importa chefias e peritos militares, estes face à falta de experiência e de conhecimentos técnicos de uma nobreza ainda assim ávida em servir a Coroa e daí obter dividendos. Depois de uma tentativa de paz frustrada, mediada por jesuítas, Portugal viu-se obrigado a sacrificar parte da sua soberania e dos seus interesses, a troco da proteção militar do inimigo do seu amigo. Tais eram as cedências que resultavam do Tratado de 1642 que faziam de cada inglês um rei de Portugal[vii], transformando o país num autêntico protetorado. Um ano antes a assinatura de uma outra convenção de assistência militar também se revelaria desastrosa, tantas seriam as concessões para, afinal, a Holanda incumprir na sua parte. Outros tratados mais ruinosos para a economia e para o orgulho nacional se seguiriam. A subserviência seria uma fatura muito cara a pagar pela sentença dos “sábios” governadores de 1581, ficando para sempre como marca permanente na política externa portuguesa.

Em 1641 começava um longo período de hostilidades intermitentes, com Portugal a saber tirar vantagem das posições defensivas que assumia, ante o fracasso das suas ofensivas, conseguindo com sucesso rechaçar as investidas do inimigo castelhano que também se mostrava mal preparado e desordenado. Com a assinatura do Tratado de paz de Vestefália em 1648, Espanha reduziu o número de frentes de combate e pôde dar outra atenção e prioridade ao conflito ibérico. Contudo a derrota decisiva de Montes Claros e o reacender das hostilidades com França, forçaram os Habsburgos espanhóis a reconhecerem finalmente a independência portuguesa em 1668, pondo um ponto final na mais longa guerra em que Portugal esteve envolvido.

Bibliografia

MARTINS, J.P. Oliveira – História de Portugal, 3ª Edição, Lisboa, Livraria Bertrand, 1882 – disponível no site da Biblioteca Nacional de Portugal (http://purl.pt/217)

RAMOS, Rui, coord.; SOUSA, Bernardo Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo – História de Portugal, A Esfera dos Livros (livro em formato .pdf)

VALLADARES, Rafel – O Novo Regime - 1640-1667, Documento .pdf, acessível na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta.

 

 

 

 

 

 

 

 



[i] Oliveira Martins classifica-o mesmo de “caquético”, in História de Portugal.

[ii] Também assim conhecida em Marrocos a Batalha de Alcácer-Quibir, por nela terem falecido três reis: o rei cristão português e dois sultões.

[iii] Além de Portugal, reinava sobre Castela, Aragão, Valência e as províncias autónomas da Catalunha e da Andaluzia.

[iv] Nos termos do Tratado de Tomar, cidade onde 1581 se reuniram as cortes que consagraram o Rei espanhol, Filipe I de Portugal.

[v] Os condes de Vimioso, Castanheira, Atouguia e o marquês de Ferreira, de acordo com Rafael Valladares.

[vi] Meses antes da insurreição portuguesa, dá-se uma rebelião na Catalunha, encontrando-se ainda a Espanha em guerra com a França e Holanda.

[vii] MARTINS, Oliveira – História de Portugal

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