A Alfabetização em Portugal

No contexto Europeu, Portugal sempre se situou numa periferia não só geográfica, mas também política e ideológica, encontrando-se comummente à margem das grandes convulsões e acontecimentos históricos, longe do epicentro das grandes revoluções sociais e do pensamento que moldaram o continente e o mundo. As ondas de choque provocadas pela mudança sempre demoraram a chegar até nós.

O período dos Descobrimentos constituirá o único da história onde a península ibérica assumiu especial protagonismo na condução do destino de vários povos, ainda que o verdadeiro centro e principal trono do mundo continuasse instalado em Roma, a quem o país ordeiramente jurava obediência, nunca alcançando o poderio de outros que, no longo prazo, seriam os grandes beneficiários e colheriam os frutos da nossa ousadia e aventureirismo.

Fiel na sua vassalagem à igreja de Roma, Portugal não seria, portanto, bafejado pelas virtudes da Reforma protestante, apontada como uma das principais causas da alfabetização dos crentes europeus apostados numa experiência mais intimista com a religião, em compreender e fazer uma interpretação pessoal da bíblia na sua própria língua. Nem acompanharia o desenvolvimento científico e económico que se verificava nos países da Europa Central e do Norte, com a respetiva urbanização e crescente sofisticação da sociedade que obrigava à literacia dos cidadãos.

Portugal não beneficiaria assim das sinergias resultantes das disrupções religiosas e económicas que ocorreram na Europa nos séculos XVI e seguintes, sendo a alfabetização e a escolarização bons exemplos duma mudança de paradigma que, a uma velocidade completamente diferente da imprimida noutros países europeus, muito lentamente foi progredindo num país profundamente rural e apático, para quem as letras estavam apenas reservadas a uma franja mais intelectual e elitista da sociedade, tendo tardiamente o Estado assumido plenamente o ensino como como prioridade já há muito definida por outras sociedades europeias.

Não obstante a introdução da escolaridade obrigatória em 1844, a Lei demorou bastante tempo a sair do papel e, no dealbar do século XX, de acordo com informação censitária, apenas 1 em cada 4 portugueses com mais de sete anos era alfabeto, representado um número diametralmente oposto ao verificado em países como a Alemanha, Holanda ou Suíça onde a taxa de alfabetização já alcançava os 98% da população.

Apesar do ímpeto reformista da 1ª República, a evolução verificada até à instauração do Estado Novo não seria significativa, saldando-se, em 20 anos, num modesto acréscimo de 8% na taxa de alfabetização, revelador não só da inércia do Estado como das próprias famílias. Até meados do século XX a aprendizagem escolar não resulta de uma imposição ou obrigação efetiva do Estado, inexistindo um sistema de ensino estruturado e abrangente. Só a força de vontade ou ambição pessoal, a decisão da família ou necessidades pontuais para o exercício de certas profissões quando diplomas escolares são obrigatórios, levam os portugueses à escola.

A escola era um luxo e o conhecimento, além daquele que é provido pela sabedoria popular e familiar, está longe de ser visto como um investimento e pouca falta faz à vida do campo. Para as comunidades rurais, que constituem o grosso do tecido social, a escola, geralmente distante dos pequenos povoados dispersos pela província, constitui um sacrifício demasiado grande para o proveito que objetivamente dele se tira. São braços que ficam ocupados demasiado tempo quando tanta falta fazem ao sustento das famílias, ao trabalho agrícola e à pecuária.

Dá-se prioridade ao saber ler, aprendizagem que por vezes é feita de forma informal, relegando-se frequentemente o saber escrever. Os elementos do sexo masculino são os mais alfabetizados porque mais ligados à realidade urbana, permanecendo as mulheres presas ao serviço doméstico que se mescla com o duro trabalho agrícola, ou não fosse essa a ordem natural defendida pela ideologia do regime autoritário que governava o país, que considerava o lar o lugar da mulher. As meninas não necessitariam assim de outra formação que não a transmitida pelas mães e avós, para que, tal como elas, viessem a tornar-se boas donas de casa e perpetuassem a cultura camponesa.

Só a partir da década de 50 a escola começa a tornar-se um hábito natural, assistindo-se a uma escolarização massiva dos jovens. Entre as duas décadas que medeiam os anos 40, quando se dá início a um plano de construção de escolas primárias, e os anos 60, o número de crianças entre os 7 e 9 anos que sabem ler mais que duplica atingindo-se uma alfabetização de 97% e de 95% de frequência escolar, neste escalão etário. Neste aspeto será de realçar o papel reformador que coube ao Estado Novo, tantas vezes responsabilizado pelo atraso estrutural e cultural do país.

No espaço de duas gerações a infância passou a ser vivida de forma distinta, com a escola e o lazer a conquistarem terreno face ao tempo que era consumido pelas crianças com trabalho produtivo doméstico e rural. Se antes só à noite havia tempo para se fazerem os trabalhos de casa e sem qualquer tipo de apoio, na geração mais recente são realizados à tarde e com o apoio de irmãos mais velhos ou dos pais. Embora estas crianças continuem a participar em inúmeras atividades produtivas e a contribuírem com a sua parte para a economia doméstica, fazem-no sem ser de forma sistemática, sem a dureza e a exigência de antigamente. No seu dia-a-dia, as crianças da geração mais recente beneficiam de toda uma série de benesses proporcionadas pela sociedade contemporânea que muito contribuem para visíveis diferenças ao nível da qualidade de vida. A imagem da criança que, descalça, percorria sozinha longas distâncias por caminhos de cabras e sujeita às intempéries para frequentar uma escola lúgubre e austera onde se cultivavam as doutrinas da igreja e do Estado, seria agora totalmente anacrónica. A experiência da escola mudou radicalmente, tornando-se espaços acolhedores e laicos, com os alunos a usufruírem de transporte disponibilizado pelos poderes locais.

A apatia dos país de antigamente, que resignados não viam que a escola pudesse mudar um destino que parecia inevitável para o filhos, não muito diferente do seu, é agora substituída pela consciencialização de que o ensino e as habilitações académicas podem ser um importante fator de mobilidade social, permitindo aos filhos ascender a um estilo de vida e patamar social superior ao que tiveram, constituindo mesmo um motivo de orgulho e objetivo de vida de muitos pais terem um filho “doutor” (licenciado).

 

Bibliografia

CANDEIAS, António; SIMÕES, Eduarda - Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos Nacionais e estudos de caso, Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 163-194, disponível na área de e-learning da UAB.

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