Memória e História

 O historiador é aquele que impede a história de ser somente história.”

A frase de Pierre Nora reflete bem a responsabilidade e o desafio que é lançado ao historiador moderno, que não deve descurar a importância da memória e do tempo presente, na construção do conhecimento histórico.

Memória e história são aparentemente duas palavras que se fundem e confundem, remetendo para um tempo passado mas que importam distinguir sob pena da primeira poder contaminar e perverter a segunda. A memória, como fenómeno social enunciado no início do século XX pelo sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945), afigura-se como um resgate mental de acontecimentos passados, uma construção individual ou coletiva do passado, menos problemática que aquela consumada pela história. Sendo um processo vivo e atual, constitui uma referência identitária dos grupos vivos que a podem manipular de acordo com uma agenda própria ou a conjuntura do momento, ora glorificando, ora demonizando o passado, de acordo com o fim que pretendam atingir.

A memória é assim um produto maleável, vulnerável, subjetivo, também à mercê da lembrança e do esquecimento, desde logo porque a nossa capacidade de fixar acontecimentos é limitada e sujeita a condicionantes psicológicos. Sem prova inequívoca e palpável, como elaboração mental que é, os acontecimentos podem ser suprimidos ou confiscados ao passado, até mesmo ficcionados, fabricados, de acordo com o que, como já se viu, melhor servir o interesse do presente que assim se une em permanência ao passado, algo que a história, com uma vocação universal, antes separa.

Por força de transformações sociais operadas na sociedade, a história tem registado a emergência de grupos antes oprimidos que passam a aduzir para o espaço público memórias suscetíveis de poderem fornecer ao historiador renovados factos ou diferentes ângulos sobre acontecimentos passados. Esta realidade esteve particularmente presente no final do século XX, período em que se verificou a emergência ou “ressurreição da memória” (NORA) verificada com a falência do comunismo e de vários regimes ditatoriais, num claro e, dir-se-ia, inevitável triunfo da democracia e do estilo de vida ocidental. Se no plano geopolítico se assistiu à emancipação de diversos povos e Estados ansiosos por exporem a sua identidade e (re)contarem a sua história, no plano social assistiu-se à ascensão de várias minorias e, desde logo, do povo anónimo que ganhou voz no espaço público e mediático para onde se carrearam e imprimiram novas memórias. O próprio acesso ao espaço mediático, a sua democratização e alargamento, com a expansão verificada ao nível dos canais de transmissão de informação e comunicação, onde pontificam a internet e as redes sociais (que parecem ser cada vez mais sinónimos duma mesma coisa), contribuíram igualmente para a proliferação de múltiplas correntes revisionistas e ao aumento imparável de teorias da conspiração que, com significativa aderência, muitas vezes colocam em causa factos historicamente documentados e irrefutáveis à vista da mais elementar lógica e razão.

A fábrica de memórias que nunca como neste século tanto produziu, mostra-se imparável porque não está obrigada à metodologia, à crítica e à reflexão próprias da história que, num campo oposto, dá antes primazia aos factos e às fontes, demanda análise científica das causas e efeitos, algo demasiado trabalhoso e demorado, incompatível com a rapidez e a voracidade consumista, também, de informação de fácil “digestão”, que caracteriza os tempos modernos. Assistimos, portanto, à supremacia da memória sobre a história, porque o próprio capitalismo viu ali uma oportunidade de negócio, ocupando com as suas plataformas um espaço antes exclusivo de instituições transmissoras da memória e das tradições, como eram a família, o livro[1] ou a própria igreja, agora em crise. Esta overdose de informação e a sua mercantilização estão a provocar um fenómeno de pulverização cultural, de desenraizamento e despersonalização cultural do individuo híper-focado no presente e na memória cada vez mais efémera, artificial e globalizante, tornando-o mais e mais desligado do passado.

Mas não obstante todas as contingências inerentes à memória, caberá ao historiador assumir ele próprio um novo protagonismo na história, sendo um árbitro imparcial, despido dos diversos condicionalismos que possam influenciar a sua análise, de modo a não só aferir da credibilidade da memória, validar e escrutinar eventuais motivações ou fatores que a possam estar a condicionar e, também, descobrir e revelar novos “locais de memória” (NORA), efetuar uma triagem daquilo que possa constituir genuína memória histórica.

 

Bibliografia

Entrevista a Pierre Nora: "El historiador es un árbitro de las diferentes memorias”, Acessível na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta.

NORA, Pierre – Entre memória e história – A problemática dos lugares, acessível online em https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763

BARROS, José D’Assunção – Memória e história: Uma discussão conceitual, acessível online em http://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/article/view/5710/4287

 



[1] Atualmente o livro parece ter perdido o efeito transformador que já teve, a eficácia como solene fonte de sabedoria e de passagem de informação. Devoram-se livros mas nem por isso acumula-se conhecimento.

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