A expressão tempestade perfeita alude a um conjunto de raras circunstâncias que simultaneamente conjugadas dão origem a acontecimentos duma invulgar magnitude. Após séculos de uma história marcada por constantes antagonismos territoriais e religiosos, no princípio do século XX, era á beira duma dessas tempestades singulares que a Europa se encontrava.
A
razão da força continuava a sobrepor-se à força da razão. O século precedente,
o das luzes, paradoxalmente não fora capaz de iluminar com razoabilidade e bom
senso as grandes potências europeias que, entre si, perpetuavam hostilidades
históricas e ressentimentos recentes enquanto simultaneamente eram confrontadas com crispações internas motivadas
pelos nacionalismos étnicos emergentes, quer dentro das suas próprias
fronteiras quer nos territórios coloniais, regiões onde se opunham tecnologias
e forças militares desproporcionais em guerras céleres mas duma violência cruel
e brutal exercida sobre os povos autóctones.
A
guerra era uma “necessidade biológica”, brandava Friedrich von
Bernhardi, um oficial alemão que dois anos antes do despoletar da primeira
guerra mundial, exultava a Alemanha a lutar pelo domínio mundial, um país que transbordava
de autoconfiança mas invejava o protagonismo e a marinha de guerra do império
Inglês, ambicionando territórios e regiões estratégicas que cada vez mais não
se coibia de reivindicar e exigir às outras potências coloniais. Antes do
austríaco Adolf Hitler reclamar por mais lebensraum, já os alemães reivindicavam
extensos territórios a leste, na posse do império Russo que, desde 1891,
mantinha uma aliança com a França, algo que os deixava no mínimo nervosos. Iriam
aliar-se ao seu vizinho teutónico do Sul, a Áustria-Hungria, uma manta de
retalhos de regiões, línguas e etnias com motivações separatistas e ligações a
Estados independentes vizinhos. O cerco ao pangermanismo fechava-se mais a sul
com a Sérvia que sonhava com a hegemonia dos povos eslavos sob a sua liderança
e o apoio russo.
Um
acordo britânico com a Rússia, firmado em 1907, que resolvia disputas coloniais
antigas, crispava os ânimos dos alemães que, entretanto, também se viravam para
Oriente, a fonte do fuelóleo que alimentava a sua moderna marinha de guerra, tentando
uma aproximação com o crescente fértil, desafiando a influência daqueles
signatários na região. Cada aliança, tratado, anexação ou empreendimento, como a
linha de caminho de ferro entre Berlim e Bagdade, eram vistos como potenciais
ameaças, aumentando a desconfiança, os ódios e tensões entre as várias
potências europeias, alimentadas pelo combustível do nacionalismo, do
oportunismo e da ganância, como provou a Itália quando, em 1912, se aproveita da
derrota da Turquia frente à Servia, anexando a Líbia, até então sob domínio
turco. Moralizados pela vitória e pelo desejo de poderem aceder diretamente ao
Adriático, os sérvios ocupariam a Albânia, provocando um ultimato Austro-húngaro.
A Sérvia retiraria, mas permanecia a ameaça eslava e o perigo da
“russialização” da região que justificavam uma guerra preventiva…
No
início do século Winston Churchill profetizava no parlamento britânico que uma
futura guerra na Europa teria enormes proporções, não opondo apenas tropas
regulares, mas os próprios povos e só podia terminar “com a ruína dos vencidos”
e a “exaustão dos vencedores”. Para o Estado-maior das forças armadas alemãs,
dois anos antes do início da grande guerra, já há a preocupação de preparar
esse mesmo povo alemão para uma inevitável guerra racial entre Germanentum
e Slaventum. Acenavam-se as bandeiras do racismo, do patriotismo e das
grandes façanhas militares do passado que inspirariam os combatentes de um
futuro cada vez mais próximo.
Em
1913 o fantasma da guerra parece afastar-se quando alemães e britânicos entendem-se
sobre a partilha e controlo de Angola e Moçambique, territórios ultramarinos
descobertos e sob a posse de Portugal. Mas este acordo, cilindrando os
interesses de um pequeno e insignificante país e sacrificando a Justiça e o
Direito internacional, que desde 1900 tinham morada esquecida em Haia, apenas
mascarava rivalidades existentes e não punha fim à escalada armamentista. Na
realidade existia uma interdependência entre todos os países europeus, nenhum
deles autossuficiente, ligados por laços comerciais e até familiares, por
fluxos de matérias primas imprescindíveis às suas economias. É nesta lógica que
é celebrado, entre os mesmos dois países rivais, já em 1914, novo acordo sobre
o caminho de ferro de Bagdad. Vivia-se a calmaria que antecede a tempestade.
O
rastilho do barril de pólvora de intrigas e invejas em que se transformara o
velho continente, seria aceso no dia 28 de junho de 1914, com o assassinato do
arquiduque austríaco Francisco Fernando, herdeiro dos Habsburgo, e da Duquesa
Sofia de Hohenberg, sua mulher, às mãos de seis conspiradores sérvios. Pouco
mais de um mês depois do início duma enorme crise diplomática, eclodia a
Primeira Guerra Mundial.
Do
lado alemão, não podia haver mais otimismo. A eclosão da guerra gerou inclusive
uma onda de alegria entre a população e de um modo geral reforçou a coesão
interna dos países. A Alemanha, em particular, era um caso de sucesso
industrial e ainda se encontrava inebriada com a esmagadora vitória de 1870/71 sobre
a França. O consenso, também entre os aliados, era a de uma guerra implacável com
rápido desfecho. No entanto a tecnologia militar evoluíra e com ela as táticas e
técnicas de combate. Já não se combatia em terreno aberto, mas em trincheiras,
assumindo-se posições defensivas bastante fortificadas, para as quais as
metralhadoras, introduzidas nos combates, concediam grande vantagem para quem
defendia, tornando tais posições dificilmente ultrapassáveis. Por vezes a
conquista de algumas dezenas de metros de terreno ao inimigo implicava o
sacrifício de milhares de inglórias vidas humanas. O impasse vivido nas várias frentes
de combate era exasperante e a introdução de novas armas, como o lança-chamas,
o carro blindado, os aviões, submarinos e as armas químicas, não serviram para
outra coisa senão contribuir para aumentar a chacina de soldados e civis, nunca
proporcionando uma vantagem decisiva a qualquer um dos beligerantes que agonizariam
por quatro longos e penosos anos.
Num
efeito dominó, de forma voluntaria ou involuntária, aliciados ou coagidos, país
após país, foram sendo envolvidos num conflito sangrento com combates em
praticamente todo o globo porque os domínios dos impérios estendiam-se a todos
os continentes, sendo particularmente decisiva, como seria 30 anos mais tarde,
a entrada dos norte-americanos no conflito.
Em
1914 o capitalismo tinha acabado de dar os seus primeiros passos, ainda não se
movimentava tão eficazmente nas sombras e o que prevalecia era uma cultura
política belicista, baseada em conceitos raciais e ideológicos, que se
sobrepunha aos interesses económicos e das grandes corporações. Ainda não era o
dinheiro que fazia girar o mundo, não era a economia que o governava. A paz era
um “produto” relativamente desconhecido, algo que só as consequências de duas
guerras mundiais iriam provar ser muito mais conveniente e “rentável” preservar.
As
guerras, mas regionais ou geograficamente circunscritas, haverão de continuar a
existir um pouco por todo o mundo, porque por vezes é necessário destruir para
construir de novo sem os erros da construção original ou, simplesmente, para delas
tirar algum proveito menos claro, quase sempre económico.
Bibliografia
GILBERT,
Martin – A Primeira Guerra Mundial. 1ª ed. Lisboa: A Esfera dos Livros,
2007
RÉMOND,
René – Introdução à História do Nosso Tempo – Do antigo regime aos nossos
dias. 2ª ed. Lisboa: Gradiva, 2003
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