Narmer: o primeiro Rei do Egipto

A partir do milénio V a.C. as terras férteis do vale do Nilo atraíram diversas tribos nómadas[i] que se fixaram naquilo que era um vasto e estreito oásis[ii] cercado de deserto. Estas populações passaram a viver dependentes do maior rio do mundo que, ocasionalmente, ora extravasava as suas margens provocando descomunais cheias[iii], mas dessa forma enriquecendo os solos com preciosos nutrientes, ora definhava em longos períodos de seca, tornando a terra árida e improdutiva. 

A necessidade de disciplinar o caudal do grande rio que desafiava o deserto e o engenho humano, implicava empreendimentos hidráulicos, como canais de irrigação e diques, duma envergadura que só com a união de esforços[iv] se alcançavam. Terá sido este um dos fatores que motivaram à agregação dos povoados em nomos[v] e posteriormente a união destes em dois grandes reinos: o mais rural Baixo Egipto, situado a norte, no Delta do Nilo, cuja autoridade era representada por uma coroa vermelha (Deshret), e o mais urbano e florescente Alto Egipto, a sul, identificado por uma coroa branca (Hedjet) e cujo centro de poder se situava em Nekhen (Hierakonpolis), o “berço da realeza” (Renée Friedman). As duas regiões prosperaram e, fruto de diferentes climas e geografias, desenvolveram culturas distintas que se manifestavam pelas diferentes abordagens à cerâmica, arquitetura e crenças[vi]. (Heagy, 2014) Não obstante, a convergência cultural, com especial predominância da cultura de Naqada, seria uma realidade antes da unificação política dos dois reinos operada em 3200 a.C.[vii] por Narmer.

Narmer foi um nome esquecido no decorrer das (30) dinastias que haviam de se seguir, não sendo referenciado por autores clássicos como Heródoto (485-425 a.C) ou Manethon (Séc. III a.C.) que descrevem antes Menes como o primeiro faraó, o “rei das duas terras” do Egipto. O consenso atual aponta no sentido de serem o mesmo rei, considerando-se o nome Narmer como nome de Horus[viii] e Menes nome de nascimento. Esta ideia é suportada por diversas evidências arqueológicas[ix], destacando-se entre elas a paleta de Narmer[x], interpretada também como um documento probatório que atesta a união dos dois reinos depois de uma operação militar empreendida pelo então monarca do Alto Egipto, tornando-se assim rei do Egipto unificado, o primeiro a usar a Sekhemty, a coroa com as duas cores que representavam o norte e o sul. 

Existem evidências de massacres de tribos relutantes em aceitar a autoridade real, da fuga de povos asiáticos (os “abomináveis”, como eram então apelidados) e pese embora o relato bélico e a crueldade graficamente explicita na paleta[xi], sendo visíveis corpos decapitados, tratou-se muito mais de uma união e não tanto duma conquista no sentido de humilhação ou subjugação de um reino sobre o outro. Tendo como objetivo o reforço dessa união, Narmer casaria com uma princesa (Neithhotep) do Baixo Egipto não evitando porém que tivesse de empreender diversas expedições militares para conter rebeliões e expandir o território até Canaan e Nubia, além de outras campanhas de natureza defensiva contra inimigos externos. Narmer concluía assim um trabalho que já vinha sendo feito pelos reis pré-dinásticos que o antecederam e completava a construção de Memphis (atual Cairo), tendo para o efeito construído uma barragem e cavado um canal que desviava o leito do rio, drenando um espaço para aquela que seria a capital do Egipto durante oito dinastias. Na realidade, empreendeu a construção em larga escala de edifícios, criando um modelo urbano que seria seguido por faraós vindouros. As cidades egípcias nunca alcançariam em dimensão as grandes cidades da Mesopotâmia, mas perdurariam por milénios.

São parcas as referências históricas ao próspero reinado de 62 anos do primeiro rei da primeira dinastia que, a par de ser responsável pela introdução de costumes tão pueris mas de grande significado prático para a vida dos egípcios, como ensiná-los a servirem-se de uma mesa na hora da refeição[xii], introduziu um estilo de vida dominado pelo luxo, extravagância e o culto de deuses antropozoomórficos baseado num sistema de oferendas e sacrifícios em sua honra, mesclando Estado e cosmogonia, tradições que serviriam de matriz para a cultura e grandiosidade da civilização Egípcia caracterizada também por uma vincada desigualdade social entre as elites e o povo servil.

A tradição egípcia associa ainda ao primeiro faraó a invenção da escrita hieroglífica. Existem provas da sua existência anterior mas é com a afirmação da realeza que, de facto, aquele tipo de escrita pictórica onde cada imagem representa uma realidade concreta, passa a estar presente nos documentos oficiais e nos textos que ornamentam as construções monumentais.

Durante uma caçada, Narmer teria sido atacado e morto por um hipopótamo e depois enterrado num túmulo (cenotáfio) de dimensões bem inferiores (103,4 m²) ao de sua esposa Neithhotep (1426 m²) que, após a sua morte, reinaria como regente até que o filho e sucessor Athotis (ou Aha) atingisse a maturidade necessária para assumir os destinos da primeira nação Estado do mundo.


Bibliografia

DOBERSTEIN, A. W. (2010). O Egito Antigo. Porto Alegre: EdiPUCRS.

RACHEWILTZ, B. d. (1958). A Vida no Antigo Egipto. Círculo de Leitores.

Webgrafia

HEAGY, T. C. (Janeiro de 2014). Who Was Menes ? Obtido em 8 de Novembro de 2019, de Archéo-Nil: https://www.archeonil.fr/revue/AN22-2012-Hendrickx%20&%20Eyckerman.pdf

MARK, J. J. (Fevereiro de 2016). Narmer. Obtido em 8 de Novembro de 2019, de Ancient History Encyclopedia: https://www.ancient.eu/Narmer/

NETTO, I. S. (2019). Narmer. Obtido em 08 de Novembro de 2019, de O Fascínio do Antigo Egipto: https://www.fascinioegito.sh06.com/narmer.htm 


[i] A grande seca que atingiu o Sahara durante o Neolítico (5500-2500 a.C) terá igualmente forçado a deslocação de populações para o vale do Nilo. (Doberstein, 2010)
[ii] Uma área correspondente a 34 mil quilómetros quadrados; nas imagens de satélite disponibilizadas pela aplicação Google Maps são claramente distintas as zonas verdes irrigadas do vale do Nilo em contraste com as regiões desérticas imediatamente adjacentes.
[iii]Quando Ísis chora o defunto esposo Osíris (…) são as lágrimas de Ísis”. (Pausânias, geógrafo e viajante grego, c. 115 - 180)
[iv] Residirá nesta união de esforços a génese da civilização Egípcia ? “As civilizações, segundo Toynbee, só surgem onde a natureza exige uma mobilização do grupo, e que essa mobilização permita modificar a natureza em favor do grupo. (Doberstein, 2010)
[v] Palavra de origem grega, os nomos eram pequenas confederações tribais, comunidades agrícolas independentes, com uma organização política e religiosa própria. Eram lideradas por chefes militares, os nomarcas.
[vi] Existia uma dualidade religiosa nos reinos pré-dinásticos. O Alto Egipto tinha Hórus como divindade. O Baixo Egipto adorava Seth, tio de Hórus.
[vii] Consoante a fonte, as datas para a unificação de Narmer (Narmeru, Merunar, Naré Mari ou Meni) variam entre 3200 e 2950 a.C.
[viii] O faraó era considerado o substituto terrestre da divindade Hórus, Deus solar, filho dos irmãos Osiris e Iris, tendo com ele conexão também através de um nome diferente do nome de nascimento. A partir da IV dinastia o faraó possuía cinco nomes. (Netto, 2019) A primeira referência histórico-mitológica a uma ressurreição é a de Osíris, morto pelo próprio irmão Seth.
[ix] Várias descobertas arqueológicas trazidas à luz do dia durante o Séc. XIX muito contribuíram para a compreensão do período da unificação do Antigo Egipto, entre as quais a maça do Rei Escorpião e a cabeça coroada de Hórus, descobertas em Hierakonpolis.
[x] Peça em ardósia com 65cm, com a forma de um escudo, foi encontrada em 1897 por  J.E. Quibell, no templo de Hórus, em Hierakonpolis; encontra-se atualmente no Museu Egípcio do Cairo.
[xi] As paletas eram objetos do dia-a-dia dos egípcios, tanto homens como mulheres, que as usavam para preparar e misturar produtos cosméticos; estes objetos habitualmente faziam parte do espólio encontrado  nos túmulos do antigo Egipto.
[xii] Segundo Diodoro Sículo (90 a.C. – 30 a.C), historiador grego, autor da “História Universal”, composta por 40 volumes dos quais apenas 14 sobreviveram à passagem do tempo.

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