Alegoria do Património
Capítulo I – Os humanismos e
o monumento antigo
Françoise Choay
Edições 70, Lisboa, 2018
Tradução: Teresa Castro
Filosofa e historiadora de teorias e formas urbanas, também
crítica de arte, tendo colaborado com diversos jornais e revistas, Françoise
Choay (1925- ) é uma referência incontornável quando se fala de proteção do
património. Autora de diversas obras também nos domínios da arquitetura e
urbanismo, objeto de constante estudo e consulta por profissionais e
académicos, destaca-se entre elas o presente livro, do qual nos propomos fazer
uma recensão, concretamente do seu primeiro capítulo.
Choay situa o nascimento do monumento histórico em 1420,
estando aqui obviamente a referir-se ao nascimento do conceito e a sua
institucionalização. Lança um olhar sobre o passado, buscando a génese, sinais
que revelem já prematuramente uma perspetiva histórica, artística e de conservação
do monumento histórico por parte do homem da antiguidade e medieval.
A consciencialização do belo, o seu sentimento de posse e
preservação, ter-se-á manifestado no século III a.C. quando se iniciam as
primeiras coleções de obras de arte. Os Atálidas procurarão com fervor objetos
de arte gregos pela sua qualidade, sendo-lhes atribuídas as primeiras
escavações com aquele fim. Os objetos da arte helénica despertarão a
curiosidade entre os conquistadores romanos, começando a entrar nas habitações
patrícias. Verificar-se-á o espólio generalizado das obras de arte gregas, que
a autora compara em escala às pilhagens napoleónicas.
Parece ter-se desenvolvido em Roma uma dinâmica em torno da
arte, havendo um mercado, especialistas e corretores de arte, que poder-se-ia
comparar com a época atual. Mas Choay sublinha diferenças essências: trata-se
de um mero processo de apropriação do conquistador, de ostentação, de prestígio,
vaidade e até mesmo snobismo por parte dos colecionadores. Estamos muito longe,
portanto, do respeito e amor à arte.
Contribuindo para o fim do Império Romano, as invasões
bárbaras serão umas das causas para o saque e desmantelamento dos monumentos da
antiguidade clássica. Mas a autora arrisca apontar o dedo ao proselitismo
cristão como causa principal. As edificações romanas serão violadas na sua
dignidade e beleza, sendo ocupadas e utilizadas apenas para fins meramente
utilitários, como habitações e armazéns improvisados, ou convertidas em templos
destinados ao culto cristão.
A Choay identifica vários proto-humanistas medievais onde lhes
deteta verdadeira paixão e deslumbramento, demonstrações de um lirismo rendido
à beleza e grandiosidade dos monumentos clássicos.
Da fase da indiferença e saque, assiste-se ao desmantelamento
com vista à reutilização, à reciclagem do monumento, formas precárias de preservação,
mas, ainda assim, mais próximas da conservação que da destruição. A este nível
é sublinhado o papel que os papas, como herdeiros de Roma, irão ter na salvação
dos monumentos históricos cuja beleza ainda resiste entre as ruínas.
Com o quattrocento chega uma nova atitude, o fascínio pelo
período clássico e as suas realizações, que tem Petrarca como um dos seus
principais protagonistas. Assiste-se à “impregnação mútua” de duas abordagens
perante os monumentos clássicos: a visão erudita dos letrados humanistas e o
olhar artístico dos artífices que àquele período vão buscar inspiração. É a miscigenação
da paixão do saber com o amor à arte.
A autora denuncia o protagonismo ambíguo que os papas irão
ter na sua responsabilidade perante a conservação dos monumentos clássicos, cada
vez mais reclamada pelos humanistas que pretendem cristalizar um passado
glorioso que estudam apaixonadamente, tornando-se detentores de coleções que
antecederão o museu. Torna-se preciso também preservar a arquitetura, os
edifícios que não cabem nas coleções privadas. Se por um lado são emitidas
bulas visando a proteção e restauro de edifícios antigos, por outro serão
muitos daqueles edifícios usados como pedreiras, fontes de matéria prima ou
destruídos em nome das políticas de construção papais visando a modernização da
cidade.
Não obstante a distância histórica que o homem do
renascimento define, entre o mundo contemporâneo e a longínqua antiguidade, a
autora em certa medida desculpa as ações contraditórias dos papas e dos
próprios colecionadores que não sentiam pudor em despojar edifícios de
determinadas peças para alimentar as suas coleções. Refere que aqueles homens
não podiam repentinamente libertar-se de mentalidades ancestrais e que era
necessário um distanciamento histórico que ainda não possuíam, para que a
familiaridade desse lugar ao respeito.
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