As Causas da Revolução Francesa

“Cause precedes effect. Effect leads to cause.”[1]

As causas da Revolução Francesa têm sido objeto de amplo estudo, distinguindo-se as motivações de ordem política, económica e intelectual, embora todas se relacionando entre si. Como fator determinante e parece que conditio sine qua non a todas as revoluções, surge a guerra, esse desastre antecedente que parece ser sempre o aglutinador de todas as causas, o gatilho que despoleta nos homens o desejo de passar das ideias à ação revolucionária. No caso francês, a derrota esmagadora na Guerra dos Sete Anos (1756-63) e a consequente humilhação e danos económicos provocados pela perda da maioria das suas colónias, abriram um caminho mais tarde alargado com a desastrosa intervenção, do ponto de vista económico, na Guerra da Independência Americana, obrigando o reino a endividar-se ainda mais, criando um efeito bola de neve no deficit das suas então caóticas contas públicas.

Do ponto de vista político, no final do século das luzes[2] vigorava em França o regime absolutista dos Bourbon, tão despótico como ineficaz em termos de governação, suportado por uma aristocracia e um clero decadentes e uma turba de funcionários corruptos e sem utilidade que parasitavam um país governado sem orçamento, sustentado pela arrecadação ilógica e selvagem de impostos sobre a grande maioria da população camponesa. Não obstante estar longe de passar fome, não deixava esse fantasma de pairar sobre o espírito do povo, grande parte dele miserável, que não podia sentir outra coisa que não fosse desprezo por aqueles que o espoliava.

Contudo a Revolução não teria origem naqueles que se alimentavam das migalhas deixadas pelas classes superiores. Seria antes desencadeada por um movimento burguês, por uma classe média economicamente poderosa que ansiava pela liberdade comercial, amordaçada pelos espartilhos do mercantilismo, insatisfeita com os regulamentos, pelo excesso de medidas protecionistas e por um sistema tributário injusto. A burguesia francesa clamava pelo prestígio e a influência que a nobreza ociosa tinha na corte, apesar de entre esta se encontrarem também vozes críticas do regime, ativistas e teóricos da Revolução como os proeminentes Montesquieu, Lafayette ou Mirabeau.

Esse ancien régime com alguma displicência tolerava ou simplesmente ignorava o pensamento discordante e mordaz de intelectuais iluministas como Voltaire ou do mais radical Rousseau. Não ditava às ideias e aos livros os entraves e as barreiras que impunha às mercadorias, permitindo assim a sua livre circulação, a sua disseminação de Paris para toda a França, das elites para o povo, sendo neste aspeto relevante a intervenção de padres anticlericais que compilavam, resumiam e difundiam o pensamento dos intelectuais, visando conquistar a opinião pública para um novo evangelho: a causa da Revolução. Era bem visível o contraste existente entre o clero superior dos cardeais e dos bispos que viviam na abundância e próximo da corte, e o clero inferior, mais próximo dos paroquianos, e como eles, pobre, conhecedor das suas dificuldades, capaz de falar a sua língua.

O intelectual é “em estado potencial, todo o homem pelo simples facto de ser humano, quer dizer, inteligente.” [CORBISIER, 1980] e embora nem todos possam exercer esse papel na sociedade e a inteligência não seja algo equitativa e democraticamente distribuído pela natureza, a importância dos intelectuais, enquanto força social, reside no facto das classes dominantes ou das que a tal aspiram, necessitarem de um sistema de ideias que sirva de base, que sustente a manutenção de um status quo ou, por outro lado, projete a visão, que se pretende gloriosa, duma realidade alternativa que justifique uma rutura com o presente.

Os regimes têm nas suas fileiras intelectuais que funcionam como cães de guarda, mas a História já tinha dado inúmeros exemplos de outros, com ideias fraturantes e contra a corrente, como Nicolau Copérnico (1475-1543), Thomas Morus (1478-1535), Giordano Bruno (1550-1600) ou Galileu (1564-1642), e, em França, no período pré-revolucionário, eram inúmeros aqueles com autonomia suficiente ou a proteção das elites conspiradoras que se distanciavam de um regime falido de divisas e ideias, como os já acima mencionados Jean-Jacques Rousseau (1712-78), Montesquieau (1689-1755), Voltaire (1694-1778), ou ainda Denis Diderot (1713-84), Claude Adrien Helvetius (1715-71) e Paul Henry Thiery (1723-89), que forneceriam as bases filosóficas e programáticas para a ação dos ativamente revolucionários Robespierre (1758-94), Jean-Paul Marat (1743-93) ou Georges Danton (1759-94) entre outros.

De entre os vários intelectuais cujo pensamento de algum modo contribuiu para a Revolução, o nome de John Locke (1622-1704) é incontornável. Considerado o pai da política liberal, Locke defendia que o homem vivia originalmente num estado natural, com total liberdade e igualdade, inexistindo qualquer lei, além da lei da natureza. Competia-lhe defender os seus direitos naturais entre os quais se incluíam o da propriedade. Uma forma de vida que poderia suscitar conflitualidade e no sentido de evitar uma mais que provável anarquia, haveria um governo com poderes muito limitados, tão somente para fazer valer a lei natural, mas que poderia ser destituído sempre que extravasasse as suas funções. Em primeiro lugar o individuo e só depois a sociedade. Os direitos naturais e a resistência à usurpação do poder e à tirania seriam peças chave na teoria da Revolução.

Influenciado pelas ideias de Locke, Voltaire foi um acérrimo defensor da liberdade de expressão, um radical no tocante ao cristianismo que abominava, um moderado quanto à forma de governo que considerava um mal necessário e que devia estar nas mãos de monarcas esclarecidos ou republicanos da classe média. Distanciava-se e desconfiava do homem comum. Foi autor de inúmeras obras escritas de teor contestatário, repletas de mensagens subliminares, que causaram grande polémica junto das instituições mais conservadoras ligadas ao regime, inspirando e criando consciência junto de várias camadas da sociedade para os ideais iluministas.

Entre outros intelectuais que merecerão destaque especial, figuram Montesquieau e sua teoria da separação dos poderes legislativo, executivo e judicial, defendendo que não existia um sistema político adequado para todos os países, em função da sua dimensão, admitindo o despotismo como o mais indicado para os de maior dimensão. Destaque ainda para Rousseau, que retomava o estado natural do homem de Locke mas ausente de conflitualidade uma vez que inexistia a propriedade privada. Todos os direitos eram cedidos à comunidade e a vontade da maioria prevalecia sobre a do individuo. Esta concepção de um Estado omnipotente prevaleceria durante a segunda fase da Revolução levada ao extremo pelo radical e mais tarde guilhotinado Robespierre.

Foi decisivo o papel que os intelectuais e filósofos tiveram na Revolução, autores de uma série de novas teorias políticas e económicas que, com sucesso, estavam já a ser implementadas em Inglaterra e que urgia também e colocar em prática numa França onde o absolutismo déspota era cada vez mais um anacronismo, sob pena de se cavar um fosso civilizacional entre não só ambos os lados da Macha, como também do Atlântico, onde, do outro lado, os Estados Unidos já levavam avanço com o seu original regime democrático inspirado nos ideais iluministas europeus.

Bibliografia

BURNS, Edward McNall - A Revolução Francesa (1789-1799)História da Civilização Ocidental,  Editora Globo 1959 (acessível em http://www.consciencia.org/a-revolucao-francesa-1789-1799-historia-da-civilizacao-ocidental)

CHARTIER, Roger - As origens culturais da Revolução Francesa. Tradução de George Schlesinger. São Paulo: Editora da Unesp, 2009, 316 p. (resenha de Joachin Azevedo Neto, Doutorando pela Universidade Federal de Santa Catarina, acessível em https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/download/308/251)

DARNTON, Robert – Gens de lettres gens du livre. Edition Odile Jacob, 1992. 302 p. (resenha de Alzira Alves de Abreu, acessível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ ojs/index.php/reh/article/view/1938)

FREITAS, Francisco Máuri de Carvalho – Os Intelectuais e a Revolução, Revista HISTEDBR On-line, Universidade Federal do Espírito Santo, 2011 (acessível em http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/45/art13_45.pdf)

 



[1] Personagem Katie, em “Devs” (2020), série televisiva realizada por Alex Garland, transmitida pelo canal de streaming HBO.

[2] Século XVIII, considerado também como o século dos filósofos.

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