Os mesteirais na sociedade portuguesa medieval

No final do século XIII a municipalização do espaço político era já uma realidade em Portugal. Todo o território do reino encontrava-se dividido em concelhos, cujas câmaras municipais possuíam competências formais muito semelhantes entre si, servindo também como intermediárias entre o poder régio e as populações locais. A criação do concelho de Lisboa remonta a 1179 através de foral concedido por D. Afonso Henriques, cidade mais importante do reino, onde os mesteirais tinham particular protagonismo numa economia que já não se baseava na produção primária, tendo-se envolvido em diversas deliberações concelhias que se encontram documentadas, conforme descritas no artigo “Os mesteirais e o concelho de Lisboa durante o século XIV: um esboço de síntese (1300-1383)”, da autoria de Bruno Marconi da Costa, publicado na revista Medievalista Online nº 21, que serve de base ao presente trabalho.

No reino de Portugal 97%[i] dos habitantes eram constituídos pela plebe, essa grande massa condenada ao trabalho, que simplesmente “Nasce, cresce, procria e morre[ii]. Entre a patuleia urbana, os mesteirais representavam um grupo socioprofissional em plena ascensão de trabalhadores com razoável nível de especialização, onde se contavam sapateiros, alfaiates, barbeiros, entre outros, situando-se numa posição intermédia no campo social, abaixo da burguesia, acima dos braceiros e serviçais. Tinham ofícios genericamente relacionados com a manufatura, que implicavam conhecimentos técnicos específicos, alguns de maior exigência mental, outros mais rudimentares, mas não menos fundamentais na cidade medieval, desde os mais influentes e prestigiantes, como ourives, até aos mais depreciados, como os carniceiros.

A vivência urbana trazia uma maior proximidade entre os artifex que partilhavam experiências e problemas comuns. Geravam-se laços de solidariedade e numa lógica de virtus unita fortius agit[iii], criam-se confrarias de ofícios, que além de representarem a vontade coletiva dos seus membros, podendo constituir uma força de pressão, tinham uma vertente social, apoiando-os em situação de doença.

A eventual necessidade de se alcançarem melhores e mais bem fundamentadas decisões, de os intervenientes representarem parte abrangente do tecido social e porque já era um formato presente noutros países da Europa ocidental, levou no final do século XIII à convocação dos mesteirais para, formalmente, participarem nas reuniões concelhias, nomeadamente em assembleias magnas, onde se debatiam e decidiam questões relacionadas com o governo da cidade.

No entanto, porque uma maior pluralidade de participantes e opiniões tornava mais difícil a obtenção de consensos, intervindo amiúde e em ultima instância o poder régio para a resolução das contendas e impasses, a experiência não correu bem, sendo os mesteirais afastados das sedes deliberativas durante o século XIV por decisão do mesmo D. Dinis que antes tinha decretado a sua mesma inclusão com a presença de “dois homens bons de cada mester”.

Os mesteirais passam a intervir apenas esporadicamente nas assembleias, agora compostas somente pelos homens bons, a elite social do concelho, grandes proprietários e comerciantes que então monopolizavam os cargos mais influentes e que terão visto com bons olhos o afastamento daqueles elementos mais truculentos que, apesar de pertencerem ao mesmo extrato social, eram desprovidos de educação básica, ao contrário de uma burguesia cada vez mais ambiciosa, que se instruía com os saberes necessários às suas atividades, nas escolas junto das Sés ou com professores particulares.

A marginalização dos mesteirais na tomada de decisões, agora a cargo duma oligarquia que se mostra indiferente às suas reivindicações e com a qual entram diversas vezes em choque, provocará um descontentamento crescente que culminará com duas revoltas em 1370 e 1380 e a criação em 1383, pelo Mestre de Avis, da “Casa dos Vinte e Quatro”[iv] de modo a que pudessem participar no governo da cidade representantes das 12 corporações de ofícios (dois por cada bandeira). Um ano depois os mesteirais formalização junto do mesmo D. João, nove reivindicações que o futuro monarca (D. João I), que apoiam, acatará.

Dada a sua natureza reivindicativa, podemos qualificar os laços corporativos e de coesão dos mesteirais organizados em confrarias, de uma militância algo próxima daquela que caracteriza o sindicalismo surgido muito mais tarde com a revolução industrial. O antagonismo entre os mesteirais e a burguesia é sintomático também duma sociedade pré-capitalista e uma forma embrionária da luta de classes mais tarde teorizada por Karl Marx (1818-1883).


Bibliografia

MATTOSO, José – História de Portugal, A Monarquia Feudal, Vol. II, Lisboa, Editorial Estampa, 1993

da COSTA, Bruno Marconi – Os mesteirais e o concelho de Lisboa durante o século XIV: um esboço de síntese (1300-1383) – Medievalista Online nº 21, 2017 – - Acessível na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta


[i] MATTOSO, José – História de Portugal, A Monarquia Feudal, Vol. II, pp. 412 (sublinha-se que mais à frente, a pp. 465 o autor volta a apontar uma a percentagem ligeiramente diferente, de 98%).

[ii] Idem, pp. 465.

[iii] Frase em latim para a máxima “A união faz a força”.

[iv] ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA – Casa dos Vinte e Quatro - Lisboa, n.d. [consultado em. 20-5-2019] – disponível online em http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/acervo/fundo-historico/fundo-camara-municipal-de-lisboa/casa-dos-vinte-e-quatro/


Sem comentários:

Enviar um comentário