A história da Arte como disciplina

A obra “As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos”, de Giorgio Vasari (1511-1574), pela racionalização e retrospetiva cronológica que faz da evolução das artes e dos seus autores, é comummente considerada o marco fundador da história da arte. Contudo, o momento do nascimento da disciplina não é consensual. André Chastel (1912-1990) situa-o com as coleções, conhecendo-se os primeiros colecionadores e eruditos de arte, na longínqua Roma antiga[i], e podemos ainda considerar como edificadores os vários tratados produzidos, ainda muito antes de Vasari, por artistas e teóricos do quattrocento, como o arquiteto e escultor Leon Battista Alberti (1404-1472) ou o também escultor Lorenzo Ghiberti (1378-1455) que nos legou a primeira autobiografia de um artista[ii].
O historiador poderá ter a tendência ou a tentação de compartimentar, por vezes quase de forma estanque, períodos históricos ou datar eventos com uma surpreendente certeza, quando na verdade não estão em causa acontecimentos inequivocamente documentados, antes, conceitos abstratos, correntes de pensamento ou estilos, cujas datações poderão facilitar a narrativa histórica, terão decerto uma  fundamentação, mas não deixam de ser definidas com base num juízo pessoal que, por mais respeitado seja, é sempre condicionado por generosas doses de subjetividade, extrapolação e especulação. O caso concreto da emergência da história da arte é exemplificativo da impossibilidade de, com exatidão, situar no tempo o seu nascimento. Terá ocorrido num momento indeterminado, quando o homem ascendeu, adquiriu o estatuto de criador, retirando essa exclusividade aos deuses. Quando o homem criador perdeu o anonimato, as suas realizações deixaram de ser consideradas meras tarefas conduzidas pela necessidade e utilidade ou geradas por intervenção de uma qualquer divindade que encontrou no humano somente um instrumento para materializar a sua criação. Com o dono a seu dono, com a autoria, com esse vínculo assumido entre artista e objeto criado, imediatamente germina uma história intrínseca ao objeto artístico.
Desde o Renascimento que o artista foi gradualmente se distanciando da produção historiográfica da qual foi precursor, concentrando a sua energia criativa no seu métier principal. É também de um distanciamento, desde a construção do monumento histórico, dum período de maturação, que Françoise Choay (1925-) entende ser necessário para que o homem alcance o devido respeito pela criação artística. Porém, a passagem do tempo exerce o seu efeito sobre a própria obra de arte, podendo estar sujeita a processos degenerativos ou a esse carrasco que pode ser a indiferença, evoluindo também na forma como é abordada. Preservação e interpretação são pois duas palavras-chave na atividade do historiador de arte que, perante a criação estética, simultaneamente uma janela para uma imensidão de passado, desde logo é chamado à responsabilidade de contrariar os ciclos de vida e morte[iii] a que está sujeita. Cabe-lhe produzir uma análise crítica, contextualizar, apresentar um estudo formal sobre o objeto artístico que pode não ter sido necessariamente arte na sua origem, mas que, com o distanciamento, evoluiu nesse sentido. Perante aquilo que resulta da intervenção do saber humano sobre os materiais[iv], em certa medida, o historiador terá a mesma atitude de um especialista forense perante uma cena de um crime. A observação minuciosa da “cena” permitir-lhe-á a recolha de indícios que conduzem à descodificação da obra nas suas várias dimensões, à sua autenticação, à identificação de técnicas e estilos, à descoberta de eventuais mensagens subliminares, ao invisível que ela possa abrigar. Desvendar também as ansiedades e tensões do próprio autor, que fatores e condicionantes sociais, económicas ou conjunturais se revelam e o influenciaram, que dramas e sentimentos pessoais terá transposto para a obra ou, consciente ou inconscientemente, escondido. Cada obra de arte transporta consigo um legado, como que um eco do passado que se pretende perpetuar, encerrando uma panóplia de mistérios. E a tarefa de os desvendar não é fácil. Quer seja decifrar o passado pela imagem ou explicar a imagem pela palavra, requer-se metodologia[v], conhecimento multidisciplinar, histórico, filosófico, antropológico, psicológico, uma vasta coleção de saberes que cooperam para a construção da historiografia artística, com diferentes pesos, consoante a atividade e área profissional onde o historiador se posicione e os objetivos a que se proponha.
A relevância da história da arte é bem vincada por historiadores contemporâneos como Vitor Serrão (1952-) que, com abnegada militância, fazem a apologia da disciplina, reclamando uma maior intervenção e reconhecimento junto dos vários poderes e domínios da sociedade atual, com particular enfâse quando estão em causa atividades que visem a valorização e salvaguarda do património histórico e artístico, felizmente cada vez mais comuns, como reconhecidos fatores de desenvolvimento económico, cultural, de coesão e orgulho local e nacional.
Tal como é inesgotável a torrente criativa do homem, parece infindável o filão de contributos que o historiador de arte já deu e seguramente irá continuar a dar para a perceção e compreensão da história, do homem e da arte. Sem ele, o sorriso da Mona Lisa não seria o mesmo.

Bibliografia
ALTET, Xavier Barral I – História da Arte, 1ª edição, Lisboa, Edições 70, 2016
CHOAY, Françoise – Alegoria do Património, 2ª edição, Lisboa, Edições 70, 2018
HUCHET, Stéphane – A História da Arte, disciplina luminosa – Ver. UFMC, Belo Horizonte, V.21, N.1 e 2, pp. 222-245, 2014 – acessível online em  https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/21/11_pag222a245_stephanehuchet_historiadaarte.pdf
SERRÃO, Vitor - A História da Arte em Portugal e a consciência do estudo e salvaguarda do Património histórico-culturalCONFERÊNCIA 1: PATRIMÓNIO E HISTÓRIA DA ARTE, Universidade de Coimbra, 18 de Abril de 2009, acessível online em https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9148.pdf


[i] CHOAY, Françoise – Alegoria do Património, pp. 35
[ii] Artigos de apoio Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2019. [consult. 2019-05-16 17:21:08]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$lorenzo-ghiberti
[iii] HUCHET, Stéphane – A História da Arte, disciplina luminosa, pp. 234 – a expressão é de Heinrich Wölfflin (1864-1945).
[iv] ALTET, Xavier Barral I – História da Arte, pp. 9.
[v] Em História da Arte – pp. 29-31, Xavier Barral I Altet identifica cinco orientações metodológicas. A formalista, centrada no estudo da composição, forma e volumes; a escola marxista; a sociológica, onde se dá enfâse à importância da sociedade e a influência dos consumidores de obras de arte sobre o artista; o método iconológico, centrado no tema; e a análise estrutural e semiológica.

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