Muitas são as maravilhas do mundo,
E nenhuma tão maravilhosa como o
homem[i].
É
no Duomo de Florença, em plena missa pascal, que ocorre a tentativa de
assassinato dos dois irmãos Medici, príncipes do Estado Italiano. Um dos mecenas
e amantes da arte, Juliano, com apenas 24 anos, acabaria por falecer nesse ato
conspirativo que choca a Florença de 1478. O poder da família sairá reforçado,
chegando mais tarde quatro dos seus membros a sentar-se no trono de Pedro, mas o episódio, pelo seu simbolismo também
herético, era elucidativo da falência espiritual duma igreja à deriva: já não
se respeitava o solo sagrado das catedrais.
São
tempos conturbados que se vivem no mundo cristão, na transição da Idade Média
para a modernidade. O século XIV conhece um cisma no ocidente (1378-1415) chegando
a existir simultaneamente três Papas[ii]
no limiar do século seguinte. Assiste-se a um processo generalizado de secularização
da igreja em todos os domínios da sociedade renascentista. Os objetos sagrados
e de culto, bens transacionáveis, perdem o seu carácter sagrado. Os negócios
clericais estendem-se à venda de cargos eclesiásticos e às indulgências que
tanto jeito deram para custear as cruzadas, tanto jeito dão para financiar a
reconstrução da Basílica de São Pedro. Depois, a demonologia e a alquimia, bem
enraizadas nas gentes rurais, no grosso de uma população que confunde devoção
com superstição, conquistam terreno perdido pela fé cristã.
O
misticismo era uma necessidade real do homem que a igreja só poderia satisfazer
com um retorno ao espírito evangélico. Mas outros valores se levantavam e a ética
era colocada na gaveta. Nos séculos XIV e XV a velha igreja estava mais virada
para a ostentação, mais interessada em ver as suas imponentes catedrais tocarem
no céu, que em amparar o homem terreno afligido pelo medo e pela miséria trazidas
pela peste. Foram vários os Papas do Renascimento, alguns com pontificados com
a duração de apenas alguns dias, que estiveram muito mais apostados em seguir
uma agenda que servisse os seus interesses pessoais e das clientelas que os
rodeavam. As contradições e a decadência pelo abuso do poder espiritual serão
particularmente notórias no pontificado do Papa Alexandre VI (1492-1503), um
Borgia corrupto cujas pretensões económicas e de poder serão expostas a nu por Girolamo
Savonarola (1452-1498), um influente frei dominicano que acabará excomungado. Sem
o exemplo vindo de cima, os membros do clero secular, dum vasto proletariado
clerical, concubinos muitos deles, levam vidas de excessos e falta-lhes o zelo
e a formação à altura das suas responsabilidades como guias espirituais. Assiste-se
a uma crise de credibilidade nas instituições eclesiásticas que encontra maior eco
na Alemanha e nos países baixos onde se encontra uma burguesia mais letrada.
À
exceção de Portugal e Espanha, porventura por razões geopolíticas, interessados
na manutenção do status quo, por toda
a Europa destacam-se vozes humanistas muito críticas, filósofos e eruditos
reformistas, como o já acima mencionado Savoranola, que faz notar o ouro dos
cálices das igrejas, quando antigamente eram de madeira; o checo Jan Huss,
precursor do movimento protestante; ou John Wycliff, de Oxford, autor da
primeira bíblia traduzida do insondável latim para um compreensível inglês. Será,
no entanto, o profundamente relativista Erasmo (1467-1536) talvez o mais
desconcertante e corrosivo crítico da hierarquia da igreja, do mundanismo das
altas figuras eclesiásticas, da ignorância dos clérigos, das cerimónias e
rituais excessivos e exibicionistas, do espírito belicista dos Papas, das
eternas discussões sobre o mistério divino, advogando um retorno do
cristianismo à simplicidade, à prática da caridade.
Contudo,
é a publicação do manifesto de Martinho Lutero (1483-1546), sete meses após o ineficaz
Quinto Concilio de Latrão (1513), 95 teses, um rol de duras críticas à igreja
de Roma, que dará início à reforma protestante que, com o suporte dos príncipes
alemães, provocará uma cisão no mundo católico. A divisão agrava-se com a fragmentação
também provocada pelos presbiterianos, liderados por Calvino e pelos anglicanos,
liderados por Henrique VIII que funda a nova igreja para lá do Canal da Mancha,
simultaneamente hostil ao Luteranismo e rejeitando em absoluto a figura do Papa
romano.
A
ideia central do fervoroso eremita Lutero assenta na salvação pela fé,
criticando a escolástica decadente que se distanciara da bíblia e do mundo real.
Se podemos caracterizar o Renascimento como um retorno aos valores artísticos e
filosóficos da Antiguidade, o Luteranismo é um retorno à bíblia, à sua
interpretação livre e pessoal, à salvação não pelo mérito dos atos mas antes
pela fé em Jesus.
Definitivamente,
os inimigos da igreja já não usavam cimitarra. O perigo vinha agora do espírito
crítico que questionava dogmas seculares sujeitos ao escrutino cientifico e
teológico de filósofos e eruditos, do conhecimento que fazia sombra à fé e ao
pensamento escolástico petrificado, da liberdade religiosa e do ceticismo transformado em ateísmo prático[iii]
daqueles que não negando a existência de Deus, comportavam-se como se ele não
existisse.
Perante
a ebulição dos novos tempos, com a emergência dos nacionalismos e consequente diminuição
da influência aglutinadora e universal da Igreja, a perda de fiéis e
propriedades para as novas igrejas, da nova visão do mundo que o Renascimento
oferece, da deificação do homem que se sobrepõe ao que é transcendente e se
questiona sobre o sentido da sua própria existência, a Igreja Católica Romana vai
cerrar fileiras.
A
reforma cristã, que será antes uma contra reforma face às brechas abertas na
união da cristandade pela reforma protestante, irá vincar ainda mais o caráter
conservador da igreja, como provam as principais decisões que sairão do
Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1553: a criação do Index Librorum Prohibitorum, a assunção
da infabilidade do Papa, a reativação dos Tribunais da Inquisição e a criação
da Companhia de Jesus, que teria como missão, ao serviço dos impérios
coloniais, expandir o cristianismo aos novos “mercados” revelados pelos
descobridores e conquistadores, tendo uma influência particularmente nefasta
sobre os povos e culturas ameríndias que irá subjugar e evangelizar à força.
O
concilio surgiu demasiado tarde para uma reconciliação com os movimentos
cristãos dissidentes, que alguns ainda acreditavam ser possível, servindo para impor
aos clérigos uma maior disciplina e reafirmar os principais dogmas cristãos, os
sete sacramentos, a transubstanciação e o celibato clerical, através de decretos
que constituem o triunfo da ala conservadora do concílio, sob influência
espanhola, sobre a ala humanista protagonizada pelo cardeal Sadoleto
(1477-1547).
A
igreja renovou-se do ponto de vista litúrgico, espiritual e sacramental, mas
barricou-se na intolerância e fundamentalismo, prosseguindo a sua hostilidade
contra outras confissões, promovendo guerras religiosas em vários pontos do
globo e não evitou um divórcio com a cultura e o conhecimento científico que
ainda perdura.
Bibliografia
HELLER,
Agnes – O Homem do Renascimento,
Lisboa, Editorial Presença, 1982
PIERRARD,
Pierre - História da Igreja Católica,
Lisboa, Planeta Editora, 1992, pp. 183-226 - Acessível na Plataforma de
E-Learning da Universidade Aberta
ZILLES,
Urbano – Teologia no Renascimento e na
Reforma, Teocomunicação, Porto Alegre, v.43, n2, pp. 325-355, 2013 –
acessível na internet em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/download/16435/10814
[i] Coro da Antígona de Sófocles.
[ii] Os Papas, Urbano VI, sedeado em
Roma, Clemente VII em Avignon e Martinho V eleito no Concílio de Pisa em 1409.
– ZILLES, Urbano – Teologia no Renascimento e na Reforma, pp. 330
[iii] HELLER, Agnes – O Homem do
Renascimento, pp 74
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